O pontífice, que anunciou ontem sua renúncia, brilha como um dos maiores intelectuais da atualidade, e suas ações terão impacto sobre a Igreja do futuro

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O Papa Bento XVI surpreendeu o mundo ontem, ao anunciar sua renúncia ao pontificado, que se tornará efetiva às 20 horas (horário de Roma) de 28 de fevereiro. Por mais surpreendente que seja, é uma decisão de consciência, que deve ser respeitada e admirada, tratando-se do homem que é. Consciente do impacto que a renúncia teria sobre o catolicismo mundial, não há como não ver aí o toque de alguém que sempre soube conciliar fé e razão. Julgando-se sem as condições intelectuais e físicas que a condução da Igreja requer nas atuais circunstâncias, fez uma escolha difícil, mas racionalmente compreensível.

Independentemente de convicções religiosas ou filosóficas, é de justiça reconhecer que Bento XVI é uma das mentes mais privilegiadas de nossos tempos. Ficaram célebres debates como os que o então cardeal Joseph Ratzinger travou com os filósofos Jürgen Habermas, em 2004, e Paolo Flores d’Arcais, em 2000 (esse último publicado no Brasil sob o título Deus existe?). Nesses diálogos, impressiona ver a sua capacidade de compreender as posições diversas, num grande respeito ao interlocutor. Pode-se dizer que Bento XVI nunca temeu as ideias contrárias, mas sim aquilo que ele definiu como um dos grandes males do nosso tempo: o relativismo, a postura intelectual que advoga não existirem verdades objetivas, mas apenas opiniões subjetivas, e que – segundo o seu modo de ver – termina por impedir um diálogo real e representa um verdadeiro mal social, ao deixar "como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades", nas palavras usadas por ele próprio na missa que iniciou o conclave do qual sairia como Papa, em abril de 2005. Quando se renuncia a parâmetros objetivos de moralidade e comportamento, florescem o hedonismo e o individualismo; o tecido social é colocado em risco; e qualquer manifestação sólida de princípios é desqualificada, sendo classificada como "fundamentalismo". Por isso, qualificava-o de "ditadura do relativismo", escancarando a grande contradição de uma doutrina segundo a qual tudo é mera "questão de opinião ou ponto de vista", mas que ao mesmo tempo se apresenta como verdade incontestável.

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Se no papado de João Paulo II a Igreja foi protagonista de acontecimentos importantes na história mundial, com a sua colaboração para a queda do comunismo, Bento XVI priorizou o que poderíamos chamar de "comunicação de ideias". Talvez tenha sido o Papa que mais tenha se empenhado na proposta do Concílio Vaticano II, de abrir a Igreja Católica a um diálogo com o mundo. Os seus discursos e encíclicas sempre buscaram estabelecer um contato com os mais diversos pensadores, de John Rawls a Nietzsche.

Nesses quase oito anos como Papa, Bento XVI teve de enfrentar sérias questões internas da Igreja, como os casos de pedofilia envolvendo padres. A sua atuação foi também surpreendente, em relação ao que poderia se esperar de um "papado de transição", como muitos o qualificaram em 2005, em razão da sua idade avançada. Embora possa ser criticado sob certos aspectos, modificou substancialmente o modo de a Igreja lidar com esses casos, exigindo transparência e impedindo que ficassem sob o controle do bispo local.

Mas, mesmos nesses períodos de crise, Bento XVI nunca deixou de ser um intelectual, um pensador. Dedicou-se a escrever uma série de livros – Jesus de Nazaré –, na qual oferecia um contraponto às teorias que excluem o aspecto sobrenatural da figura de Cristo. No seu modo de entender o governo da Igreja, aí estava o que considerava a questão fundamental: defender e mostrar a verdade dos Evangelhos.

O Vaticano já deixou claro que Bento XVI não exercerá influência nenhuma sobre o conclave que elegerá seu sucessor: assim que deixar o papado, Ratzinger deve se recolher e levar "uma vida dedicada à oração", segundo a mensagem que leu ontem aos cardeais. Apesar do pontificado relativamente curto, deixa uma marca inesquecível e histórica, como líder religioso e como intelectual.