Não é exagero nenhum dizer que o Brasil inteiro perdeu, no último dia 27 de maio, com o falecimento do arquiteto e urbanista Jaime Lerner. Seu legado transcende e muito as intervenções específicas realizadas por ele na qualidade de criador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) e prefeito por três vezes da capital paranaense: as soluções concretas que ele implantou, muitas das quais foram copiadas mundo afora, são o reflexo de uma concepção de cidade que pode muito bem inspirar gestores em qualquer lugar, adaptando-se às circunstâncias locais.
Afinal, seria injusto classificar Lerner como um mero criador de cartões-postais que se tornaram símbolos de Curitiba, facilmente reconhecíveis mesmo por quem jamais colocou os pés na cidade. Pois a capital paranaense, especialmente a partir da década de 80 do século passado, ganhou fama nacional por oferecer a seus moradores uma qualidade de vida raramente encontrada em outras metrópoles brasileiras – e isso é algo que não se consegue unicamente à base de cartões-postais.
Lerner acreditava na cidade como espaço não de encapsulamento, mas de convivência
Boa parte das ações implantadas por Lerner em Curitiba e copiadas Brasil e mundo afora se baseavam na sua convicção de que a cidade tem de priorizar o pedestre; manter próximos trabalho, lazer e residências; ser ambientalmente sustentável; e permitir deslocamentos rápidos quando eles forem necessários. Essas ideias guiaram, por exemplo, o Plano Diretor da cidade, um programa pioneiro de reciclagem e um de seus principais legados, o Bus Rapid Transit (BRT): um sistema de transporte baseado em pistas exclusivas para os ônibus, as chamadas “canaletas”, com integração entre linhas realizada em terminais espalhados pela cidade. Um modelo revolucionário à época, que inúmeras cidades também implantaram à sua maneira, e que integrou até o legado urbanístico do Rio de Janeiro nos Jogos Olímpicos de 2016. Inovações tecnológicas mais recentes e que não existiam quando da criação do BRT, como a integração temporal por meio de cartões – permitindo-se pagar uma única passagem para usar várias linhas mesmo sem que a baldeação ocorra em um terminal físico –, não são substitutos do sistema criado por Lerner, mas um bem-vindo complemento.
A repercussão internacional da morte de Lerner – que foi presidente da União Internacional de Arquitetos, consultor da ONU para temas de urbanismo, e escolhido em 2010 pela revista Time um dos 25 pensadores mais influentes do mundo – mostra como sua concepção de cidade é universal. Qualquer gestor urbano pode adaptar o método das “acupunturas urbanas” desenvolvido por Lerner: pequenas intervenções que têm grandes consequências para a qualidade de vida de uma cidade, ainda que no início enfrentem enormes resistências, como foi o fechamento aos automóveis de parte da Rua XV de Novembro, uma das principais vias urbanas de Curitiba, em 1972.
Lerner acreditava na cidade como espaço não de encapsulamento, mas de convivência. E, quando esse encapsulamento foi forçado sobre praticamente todo o mundo, com a pandemia de Covid-19, o urbanista provocava a reflexão em artigo publicado na Gazeta do Povo: seremos capazes de repensar a cidade para que, quando tudo voltar ao normal, ela seja esse espaço que une, em vez de separar? Lerner não queria áreas unicamente residenciais, que forçam deslocamentos muitas vezes desnecessários em busca do trabalho ou de acesso a comércio e serviços, nem “centros velhos” onde não mora ninguém, desertos à noite, mas bairros vivos, que pulsam o dia todo. Afinal, “viver é mais que morar”, expressão que escolheu para o título daquele texto.
E, para que a cidade proporcione vida, não apenas a existência gasta em longos deslocamentos de casa para o trabalho, ela tem de permitir uma intensa vida cultural e artística, fomentar os pequenos negócios, privilegiar espaços públicos onde as pessoas queiram e possam estar juntas, montar uma malha urbana que não deixe seus cidadãos perder tempo, buscar soluções de mobilidade que privilegiem a sociedade como um todo. Lerner conseguiu aplicar esse ideário em Curitiba e em outros municípios que buscaram seus serviços, mas estava convicto de que esta é a vocação de todas as cidades.
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