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A pesquisadora da USP Nelly Novaes Coelho, referência em literatura para infantes, disse certa vez que o tempo será a ideologia do século 21. De tempo ela entende: é octogenária, está na ativa e se jacta fazer só o que lhe dá prazer, mérito de quem manda nos próprios ponteiros.

Feito militantes da luta armada, quiçá, vamos pedir as horas roubadas de volta – pelo menos para recuperar a deliciosa sensação de uma interminável tarde vadia de sábado, com um livro ao alcance da mão e com conversa para jogar fora. Nesse dia, havemos também de nos dar conta de que a tecnologia, movida pela velocidade e a síntese de um twitter, consome eternidades para ser administrada. É com os aparelhos em off, sabe-se, que a Terra volta a sua rotação e seus moradores recuperam a escala humana.

Mas o tempo não será a única reserva ideológica do século 21 – este século sem muros em Berlim, sem Guerra Fria, e já se despedindo da Cuba Libre. O lixo, ao lado do tempo, tornou-se a bandeira do futuro próximo, sob a pena de, do contrário, não haver futuro nenhum. Reciclar virou questão de vida ou morte – ou mais de morte, do que se tem notícia.

O que se pode perceber, contudo, é que a devolução do tempo e a gestão racional dos detritos hão de ser tão ou mais difíceis de alcançar que o sonho de um mundo livre da tirania. A utopia aplicada a práticas do cotidiano é a mais difícil das tarefas – prescinde do discurso e pede a mão na massa, a mudança de hábitos, e hábitos são uma segunda natureza.

Gerir o lixo e o tempo exige começar tudo de novo. Assim falando, soa como uma tentativa de reduzir um assunto de ordem internacional ao quintal pequenino onde praticamos nossos valores paroquianos. Qualquer um diria sem pestanejar que a quebra-quebra para saber quem vai ficar com o lixo – em qualquer conta do planeta, inclusive na civilizada Inglaterra, como bem se viu – é uma questão política. E que o cidadão comum responde por um ínfimo dessa história.

Aí é que são elas. O grande barato da gestão do lixo é que depende de uma ação em rede, à ma­­neira dos mais importantes assuntos contemporâneos. É um assunto tão individual quanto coletivo e não há quem não sofra os efeitos do serviço malfeito. Daí a certeza de que está se tornando uma ideologia – mexe com um modelo de vida, de sociedade, de cidade, abriga uma ética desafiante. É um cuidado que começa no banheiro de casa e redunda no destino dos oceanos.

À revelia dos ganhos da onda verde – cada vez maior desde a Conferência Rio 92 – ainda há chão a palmilhar, até que o meio ambiente e o destino adequado do lixo se tornem uma causa social. Prova disso é o ônus que cabe aos mais pobres na resolução do problema. São eles que administram a maior parte do volume do lixo, sem que essa contribuição redunde em dinheiro no bolso. O lixo é para essa parcela da população sinônimo de informalidade e até de escravidão moderna, como mostrou matéria do jornalista Mauri König, publicada pela Gazeta do Povo em 16 de agosto.

A reportagem "Escravos do Lixo" chama atenção para as condições desumanas enfrentadas pelos 15 mil carrinheiros de Curitiba e região me­­tropolitana. Em bairros como Parolin e Vila Tor­­res, até 60% dos catadores vivem em barracões. A situação sinaliza o ponto em que estamos. Se na ponta da cadeia da reciclagem existe gente pa­­gando comida e aluguel com o resultado de seu trabalho é porque se está longe, muito longe. E que não resta à sociedade organizada outra saída senão incluir o lixo em seu expediente, a ferro e a fogo, de modo a transformá-la na mais importante agenda social dos nossos dias.

É preciso arrumar tempo para tanto. É isso, ou não haverá tempo nenhum.

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