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Se em condições normais já não seria nada aconselhável um país desperdiçar a oportunidade de receber enormes investimentos em infraestrutura, mais trágico ainda seria que isso ocorresse no Brasil, cuja infraestrutura ferroviária precisa desesperadamente de ampliação e modernização, e que necessita de investimentos que ajudem a gerar emprego e renda. Mas foi o que quase ocorreu quando o Senado se dispôs a tirar da gaveta o Marco Legal das Ferrovias, aprovado na terça-feira pela casa, e que agora tramitará na Câmara dos Deputados.
Em 2018, o senador José Serra (PSDB-SP) apresentou o PLS 261/18, que criaria um marco regulatório para o setor ferroviário. O projeto, no entanto, tramitou muito lentamente na casa, e o governo federal, alegando que o tema era urgente e que a pandemia havia travado as discussões do projeto de lei no Senado, tomou a iniciativa de publicar a Medida Provisória 1.065/21 em 30 de agosto. A grande inovação da MP era a adoção do regime de autorização, em que o investidor privado interessado em construir uma ferrovia busca o poder público e apresenta seu projeto, que pode ser aprovado ou rejeitado. Até então, havia apenas a possibilidade de concessão, com leilão e reversão dos equipamentos à União após o fim do contrato.
Que a iniciativa privada possa explorar sem amarras desnecessárias todo o potencial que o país oferece para o transporte ferroviário
O efeito foi instantâneo: em menos de um mês, o Ministério da Infraestrutura recebeu 14 pedidos de autorização para a construção de 5,3 mil quilômetros de ferrovias cortando dez estados e o Distrito Federal, com investimento total de R$ 80 bilhões. Isso aumentaria em quase 20% a extensão da malha ferroviária nacional, que é de 29,1 mil quilômetros – basicamente, a mesma extensão de quase 100 anos atrás. Para se ter uma ideia do déficit brasileiro no setor ferroviário, a malha brasileira é quase idêntica à da França, país 15 vezes menor que o Brasil, com área equivalente à da Bahia. Os Estados Unidos, com território apenas 11% maior que o brasileiro, têm 293 mil quilômetros de ferrovias, dez vezes mais que o Brasil. Mesmo com o que o ministro Tarcísio de Freitas chamou – com razão – de “a maior revolução nos últimos 100 anos” no transporte ferroviário nacional, o Brasil continuaria a ter uma malha muito inferior ao seu potencial.
E mesmo essa revolução esteve ameaçada quando o relator do PLS 261, Jean Paul Prates (PT-RN), apresentou um novo parecer, no mesmo dia 30 de agosto em que a MP 1.065 era publicada. Ele também previa o sistema de autorização, mas com diferenças que encareceriam ou mesmo inviabilizariam os projetos apresentados em setembro ao Ministério da Infraestrutura, a ponto de haver empresas prometendo desistência caso o texto de Prates acabasse aprovado.
O bom senso, no entanto, prevaleceu. Governo e oposição se acertaram para que emendas de plenário deixassem o PLS 261 mais parecido com a MP 1.065. Também ficou acertado que alguns dispositivos presentes no projeto de lei, mas ausentes na medida provisória, se aplicariam apenas aos trechos concedidos, não aos autorizados; outros só valeriam para projetos solicitados depois que a lei for aprovada, garantindo que os pedidos de autorização já feitos sejam regidos pelas regras da MP 1.065 e evitando surpresas desagradáveis. Como parte do acordo, governo e Congresso deixarão a MP caducar no fim de outubro e seguirão adiante com o PLS 261, que o Senado aprovou em votação simbólica.
Agora, o que se espera da Câmara é que não volte a colocar em risco o muito que já foi conquistado graças à iniciativa do governo com a MP 1.065, e permita que a iniciativa privada possa explorar sem amarras desnecessárias todo o potencial que o país oferece para o transporte ferroviário. “É um absurdo que aqui no Brasil, por exemplo, um grande grupo que tenha um plano de negócios bilionário, que tenha o desejo de investir em ferrovia, não possa, porque ferrovia é uma exclusividade do Estado”, afirmou Tarcísio de Freitas em audiência sobre o tema no Senado. A estimativa de sua pasta é que a participação do modal ferroviário na matriz brasileira de transportes dobre em apenas 14 anos, passando dos atuais 20% para 40% em 2035 e ajudando o país a finalmente superar a enorme dependência do transporte rodoviário, um gargalo logístico que já dura décadas.