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Como quase tudo no Brasil de hoje, a discussão sobre o chamado “marco temporal”, critério estabelecido na Constituição de 1988 para a demarcação de terras indígenas e que está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal, acabou contaminada pela polarização política. Como o presidente Jair Bolsonaro manifestou sua posição sobre o tema, automaticamente vários setores da sociedade se alinharam favoráveis ou contrários ao marco temporal única e exclusivamente a partir do que afirmou o presidente, e não a partir dos critérios jurídicos que devem embasar uma decisão sobre o tema. E a análise que precisa ser feita em tema tão sensível é justamente esta: o que diz a lei e como aplicá-la.
A Constituição Federal de 1988 afirma, no caput do seu artigo 231, que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. No parágrafo 1.º, define que “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” são aquelas “por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”. Na sequência, o constituinte garantiu uma série de direitos aos índios: a posse da terra será permanente (parágrafo 2.º), eles não podem ser expulsos de suas terras (parágrafo 5.º), e terão direito a participação sobre os resultados de atividades econômicas realizadas em suas terras com autorização do Congresso (parágrafo 3.º).
O marco temporal não é, como dizem os detratores, plataforma de agropecuaristas inescrupulosos e de um presidente sem consideração para com os índios; ele é a aplicação pura e simples da Constituição
A chave para compreender o marco temporal é a expressão “tradicionalmente ocupam”, que dá aos índios a posse da terra em que estavam na data da promulgação da Constituição, segundo as características listadas no parágrafo 1.º do artigo 231, mas não a de terras que viessem a ocupar ou mesmo invadir depois de 5 de outubro de 1988. O Supremo já havia ratificado esta interpretação em 2009, no julgamento sobre a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. A corte decidiu em favor dos índios, contra arrozeiros que chegaram à região nos anos 90 – ou seja, depois da promulgação da Constituição –, mas deixou claro que a data de 5 de outubro de 1988 era crucial para a definição da posse da terra.
O caso que é agora julgado pelo Supremo envolve a posse de uma área em Santa Catarina. De um lado, a Fundação Nacional do Índio (Funai) afirma que, em 2003, o Ministério da Justiça atestou que a região era ocupada tradicionalmente pelos índios da etnia xokleng. No entanto, uma fundação vinculada ao governo catarinense diz ter documentação comprovando a posse da área, que teria sido invadida pelos índios em 2009.
Esta é uma controvérsia que poderia – e deveria – ser resolvida de modo simples, averiguando-se quem ocupava a terra quando da promulgação da Constituição, e aplicando os princípios estabelecidos na Carta Magna e no julgamento de Raposa Serra do Sol. No entanto, complicou-se tanto a discussão que o Supremo pode até mesmo derrubar o critério constitucional e reverter a jurisprudência de 2009, abolindo o marco temporal. Esta é a posição do relator Edson Fachin, para quem muitas tribos não têm meios de comprovar que estavam, em 1988, nas terras que pleiteiam e das quais teriam sido expulsas posteriormente. Em vez do critério temporal, defende o ministro, o elemento definidor deveria ser um laudo antropológico da Funai – o que cria um primeiro problema, por se tratar de entidade cuja isenção no tema é ao menos questionável, já que se destina à defesa dos povos indígenas – que atestasse a ocupação “tradicional” da terra nos moldes do parágrafo 1.º do artigo 231 da Constituição.
É forçoso reconhecer que o Brasil, historicamente, não tratou seus indígenas com a dignidade que eles merecem. E o fez das mais diversas maneiras, indo da usurpação pura e simples de suas terras até certo “congelamento” ideológico defendido por muitos antropólogos que enxergam os índios como “museus humanos”, negando-lhes o direito de fazer suas escolhas livres, obrigando-os a abrir mão de qualquer avanço tecnológico e a não mudar absolutamente nada em suas práticas econômicas, culturais e religiosas, mesmo que esses indígenas desejassem adotar um outro estilo de vida. O constituinte buscou realizar uma reparação, reconhecendo os “costumes, línguas, crenças e tradições” indígenas e, principalmente, garantindo-lhes o direito à terra. Mas, para que pudesse haver uma pacificação definitiva do assunto, foi preciso estabelecer critérios, e a escolha do constituinte foi pelo marco temporal, que já garantiu aos indígenas algo entre 10% e 14% do território brasileiro, dependendo das estimativas – uma proporção já muito significativa quando se considera a participação dos indígenas na população brasileira.
O simplismo polarizador atual tenta descrever o marco temporal como mera plataforma de agropecuaristas inescrupulosos e de um presidente sem consideração para com os índios; no entanto, ele é a aplicação pura e simples da Constituição. A regra está posta: havendo a comprovação da ocupação da terra pelos indígenas em outubro de 1988, não se pode negar seu direito e o poder público tem a obrigação de seguir adiante com a demarcação da terra. Mas revogar o marco temporal seria colocar todo esse processo em xeque, plantando a semente do caos sobre o direito à propriedade de áreas rurais no Brasil e mostrando que a única certeza que existe, quando um tema chega ao Supremo, é a de que não existe certeza alguma.