A recente rusga entre o presidente Jair Bolsonaro e a equipe econômica comandada por Paulo Guedes em torno do financiamento do (agora enterrado) Renda Brasil corre o risco de prejudicar um debate importante. A equipe econômica havia proposto congelar aposentadorias, pensões e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) para bancar os cerca de R$ 20 bilhões que seriam a diferença entre o gasto atual do Bolsa Família e o custo estimado do Renda Brasil, ideia que irritou o presidente e tem a condenação – justa – da maioria da sociedade. Guedes lembrou, no entanto, que a equipe econômica tem um objetivo mais amplo para o gasto público, resumido nos chamados “três Ds” – desindexar, desvincular e desobrigar. E aqui mora o perigo: a rejeição a uma eventual desindexação dos benefícios previdenciários não pode nos levar a rechaçar de antemão qualquer outra desindexação, desvinculação ou desobrigação. Os números do mais recente relatório da Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado Federal, mostram que flexibilizar o orçamento será cada vez mais necessário para que o poder público não se veja de mãos completamente atadas, nem transforme em prática cotidiana o desrespeito às regras orçamentárias.
O texto foi escrito antes do encerramento das discussões sobre o Renda Brasil e apontava para o risco de implementar o programa sem cortes de gastos, mas todos os outros alertas continuam muito pertinentes. Mesmo com a meta flexível de déficit primário, segue havendo a restrição do teto de gastos, e as projeções da IFI apontam para um risco de descumprimento do teto já em 2021, apesar de a Proposta de Lei Orçamentária Anual (PLOA) prever o cumprimento do teto. Além disso, faltarão cerca de R$ 450 bilhões, ou aproximadamente 30% de todas as despesas primárias do orçamento, para o governo cumprir a “regra de ouro”, que impede o endividamento da União para pagamento de despesas correntes. Será preciso que o Congresso autorize esses gastos e, se não o fizer, vários setores do governo correm o risco de simplesmente parar em algum momento de 2021.
Ínfimos 2% do orçamento não dão liberdade alguma para que um gestor coloque em prática seus projetos
Outro número preocupante, e que já estava previsto na PLOA, é o do investimento público, que estará no menor patamar desde o início da série histórica do Tesouro Nacional: apenas R$ 25,9 bilhões – mesmo que os parlamentares acrescentem investimentos na tramitação da lei orçamentária, será muito difícil tirar 2021 da lanterna neste quesito. O valor representa meros 2% do orçamento da União, e o motivo das sucessivas quedas no investimento público é simples: as despesas obrigatórias seguem crescendo, muitas vezes acima da inflação, obrigando o governo a cortar as despesas discricionárias (de livre escolha) para cumprir as metas e respeitar regras como o teto de gastos. O relatório da IFI mostra, por exemplo, que transporte e saneamento receberão, em 2021, respectivamente, 49,2% e 13,1% do que recebiam em 2010.
Daí a necessidade dos “três Ds”. Não se trata de aplicá-los a toda e qualquer despesa; faz sentido, por exemplo, atrelar aposentadorias e pensões ao salário mínimo, especialmente considerando que a maioria dos benefícios é de valores baixos, e a desindexação traria um risco enorme de deterioração da renda de brasileiros vulneráveis. Mas há muitos outros pontos que engessam o orçamento, mantêm recursos parados ou forçam a elevação automática das despesas mesmo quando as receitas se tornam escassas, como no momento atual, em que a atividade econômica deprimida afeta a arrecadação.
Ínfimos 2% do orçamento não dão liberdade alguma para que um gestor coloque em prática seus projetos e as plataformas que a sociedade endossou pelo voto. Ainda que muitas vinculações, obrigações e indexações tenham sido estabelecidas com motivos nobres, como garantir recursos para determinada área, na prática elas amarram as mãos do governante e desconsideram o fato de que as prioridades e necessidades de cada área mudam com o tempo. O choque da sociedade com a ideia de congelar aposentadorias não pode ser usado para esconder a urgência de se trazer mais flexibilidade ao orçamento. Sem um esforço para desindexar, desobrigar e desvincular pelo menos algumas despesas, situações como o pífio investimento público previsto para 2021 se tornarão cada vez mais comuns.
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