O Brasil está mais próximo de ter o seu próprio “passaporte de vacina”. O Senado aprovou, no dia 10, o Projeto de Lei 1.074/2021, que cria o Certificado de Imunização e Segurança Sanitária (CSS) – a opção pelo termo “certificado” deveu-se à intenção de não criar confusão com o documento de viagem. Um texto que tem pontos positivos e que pode ser tábua de salvação para vários negócios, mas que infelizmente tem uma redação suficientemente ambígua a ponto de também poder ser usado como punição para quem não se vacinar.
O artigo 3.º do PL 1.074 afirma que “o CSS poderá ser utilizado pela União, pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios para suspender ou abrandar medidas profiláticas restritivas de locomoção ou acesso de pessoas a serviços ou locais, públicos ou privados, que tenham sido adotadas, na forma da Constituição Federal e da lei, com o objetivo de limitar a propagação do agente infectocontagioso causador do surto ou pandemia”. Isso significa que, caso determinadas restrições estivessem em vigor, as pessoas vacinadas não estariam sujeitas a essas proibições. Para evitar o argumento de que a vacinação segue a passos lentos no país e que este critério excluiria muitas pessoas que ainda não tiveram a chance de vacinar embora queiram fazê-lo, o PL 1.074 ainda incluiu no CSS a possibilidade de atestar resultados negativos em testes laboratoriais recentes.
Na prática, pode-se até mesmo afirmar que o projeto do “passaporte de vacina” enterra de vez as restrições absolutas que obrigam o fechamento de estabelecimentos
Por este ângulo, o CSS serviria até mesmo como a chave para se reativar alguns setores que a pandemia atingiu de forma mais severa. Eventos como shows ou festas, por exemplo, seguem totalmente proibidos em muitas cidades e estados brasileiros, mas poderiam voltar a ocorrer desde que os frequentadores tivessem o CSS. Na prática, pode-se até mesmo afirmar que o projeto enterra de vez as restrições absolutas que obrigam o fechamento de estabelecimentos. Afinal, se “o titular do CSS (...) não poderá ser impedido de entrar, circular ou utilizar qualquer espaço público ou privado”, como diz o inciso I do parágrafo 1.º do mesmo artigo 3.º, prefeituras e governos não poderão mais proibir completamente determinadas atividades, já que elas estarão permitidas a quem tiver o CSS.
O certificado, assim, funcionaria como um nudge – o termo usado pela economia comportamental para descrever um incentivo a determinada atitude, premiando os que a realizam em vez de punir quem prefere se recusar. Em muitas situações, aliás, os nudges deveriam ser a primeira escolha dos gestores interessados em promover certos comportamentos. Eles criam uma diferenciação, é verdade, mas o fazem acrescentando benefícios, e não retirando direitos. No entanto, por mais positiva que seja a intenção dos criadores do CSS, é preciso também fazer outras perguntas: é oportuna, no momento atual, uma iniciativa como essa? Há riscos?
Incentivos como nudges costumam ser mais comuns quando se quer promover certo comportamento entre um grupo que tende a não adotá-lo. Mas não é o caso da vacinação: pesquisas de opinião demonstram que parcela bastante significativa da população tem, sim, a intenção de se imunizar, e o Brasil só não conseguiu ainda uma cobertura vacinal maior contra a Covid-19 porque não há doses suficientes; do contrário, muito mais brasileiros já teriam se vacinado. Neste contexto, incentivos seriam desnecessários, ainda que não façam mal. Mas o problema, aqui, é outro: a forma como o CSS foi concebido, ainda que na meritória intenção de acelerar a reativação de vários setores da vida econômica e social e de incentivar a vacinação, permite também a discriminação contra os não vacinados.
Isso pode ocorrer de duas maneiras. Na mais explícita, municípios e estados que hoje determinam, por exemplo, que restaurantes ou o transporte coletivo funcionem com certa capacidade, independentemente de os clientes ou passageiros estarem ou não vacinados, no futuro podem limitar este ingresso apenas aos portadores do CSS. Veríamos a proliferação do aviso com os dizeres “O ingresso neste local está condicionado à apresentação do Certificado Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (CSS)”, previsto no artigo 3.º, parágrafo 1.º, inciso II do PL. E isso permite que tanto o poder público quanto entes privados passem a impor restrições baseando-se unicamente no status vacinal dos indivíduos.
A forma como o CSS foi concebido, ainda que na meritória intenção de acelerar a reativação de vários setores da vida econômica e social e de incentivar a vacinação, permite também a discriminação contra os não vacinados
Mas há uma outra forma, mais sutil, de punição aos não vacinados: prefeitos e governadores podem estender desnecessariamente as restrições mais severas, já que os vacinados não serão afetados por elas. Em outras palavras: ainda que os indicadores sanitários – ocupação de leitos, taxa de contágio, número de novos casos e mortes – estivessem baixos ou em queda, um governante poderia prolongar medidas restritivas de modo que apenas os portadores do CSS tivessem acesso a estabelecimentos, serviços ou eventos. Mesmo em um cenário de baixo risco para toda a coletividade, incluindo os não vacinados, estes seguiriam banidos de inúmeros ambientes. Isso prejudicaria não apenas os não vacinados, mas também todos os negócios que poderiam ter clientela maior, e no entanto continuariam obrigados a atender apenas as pessoas imunizadas.
Em ambos os casos, estaríamos diante de uma discriminação nociva e completamente desproporcional, fazendo dos não vacinados verdadeiros cidadãos de segunda classe, como já lembramos neste espaço – afinal, certos direitos que se pretende vedar a este grupo podem ser exercidos normalmente até mesmo por criminosos condenados cumprindo pena em regime aberto. Ainda que o PL 1.074 não proponha absurdos completos como impedir não vacinados de emitir documentos ou participar de concursos, como já se chegou a cogitar, ele deixa possibilidades abertas a gestores não muito afeitos às liberdades individuais, especialmente considerando a autonomia concedida pelo STF a estados e municípios na elaboração de regras para conter a pandemia. Também preocupante é o fato de o projeto não prever salvaguardas para pessoas que, por vários motivos, não podem se vacinar, ou que não desejam fazê-lo exercendo a objeção de consciência.
É possível que um prefeito ou governador use apenas a parte “positiva” do PL 1.074, impedindo que os não vacinados tenham direitos diminuídos enquanto permite aos já vacinados (ou portadores de teste negativo recente) o acesso a locais e eventos afetados por restrições definidas de forma honesta e racional. Mas, da maneira como o texto está redigido atualmente, ele abre uma caixa de Pandora impossível de fechar no futuro – e o faz desnecessariamente, já que, à medida que mais e mais brasileiros se vacinem, a tendência é de que a pandemia finalmente seja controlada, livrando também os que não podem ou mesmo os que não querem se imunizar, mas que nem por isso devem ter tolhidos seus direitos básicos.