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Editorial

O Porta dos Fundos e os limites à liberdade de expressão

No programa do Porta dos Fundos, entre outros conteúdos questionáveis, Jesus é retratado como homossexual. (Foto: Reprodução)

É amplamente conhecida a história contada pelos humoristas do grupo inglês Monty Python a respeito da origem de um de seus longas-metragens. Interessados em satirizar Jesus Cristo, eles vasculharam os Evangelhos à procura de algo que rendesse piadas, mas acabaram desistindo. “Não há como tirar sarro do que ele [Cristo] diz, é coisa muito digna”, afirmou Eric Idle, um dos membros da trupe. O resultado foi A vida de Brian, cujo enredo gira em torno de uma outra pessoa, contemporânea de Jesus e que é confundida com o Messias. Já os brasileiros do Porta dos Fundos não tiveram a mesma sensibilidade em seu especial de Natal. A primeira tentação de Cristo, que começou a ser exibido em 3 de dezembro pelo serviço de streaming Netflix, mostra Jesus em sua festa de 30 anos (ou seja, prestes a iniciar sua vida pública), na qual fica sabendo que é adotado e que seu pai verdadeiro não é José, e sim o próprio Deus. Um ponto que se tornou especialmente ofensivo para cristãos de diversas denominações é o fato de Jesus ser retratado como homossexual, pois leva um namorado para a festa.

Boa parte das reações ao vídeo, até o momento, tem se concentrado no boicote à Netflix e no pedido para que as pessoas cancelem sua assinatura do serviço. Não é nosso objetivo, no momento, avaliar se esta é uma reação acertada ou não, mas é importante lembrar que, em sociedades democráticas, o boicote é uma expressão de liberdade individual em que a pessoa avalia os prós e contras de consumir determinado produto ou serviço. No caso em questão, trata-se de avaliar se vale a pena abrir mão dos demais conteúdos oferecidos – e que incluem obras com mensagens que muitos cristãos veem como positivas – para não acabar financiando também o que se considera uma ofensa grave. O boicote, inclusive, é ferramenta amplamente utilizada por minorias e outros grupos de pressão, e não pode ser deslegitimado única e simplesmente com base em quem organiza e quem é atingido pela ação.

Por mais valiosa que seja a liberdade de expressão, ela não legitima um “vale tudo”

O tema que nos interessa, aqui, é outro: discutir se, quando o tema é religião, há limites ao alcance da liberdade de expressão e possíveis consequências jurídicas. Diversos países usam abordagens diferentes para o tema. Em uma ponta, está o ordenamento legal norte-americano, que consagra a liberdade quase irrestrita; no entanto, a maioria das outras democracias do Ocidente segue a tradição pós-vestfaliana, surgida com o encerramento das guerras de religião que varreram a Europa nos séculos 16 e 17, e que defende o respeito às diferentes confissões religiosas, inclusive como ferramenta de pacificação da sociedade. A Alemanha, por exemplo, criminaliza a mera ofensa às religiões, o que faria dela uma lei bastante restritiva se não fosse pelo detalhe de exigir que a ofensa possa “perturbar a paz pública”. Isso cria uma divisão entre religiões que podem ser ofendidas, pois seus membros reagem de forma não agressiva, e religiões que não podem ser ofendidas, pois a resposta de seus fiéis é violenta – o que nos remete à resposta que um dos membros do Porta dos Fundos, Fábio Porchat, deu em entrevista de 2013 ao jornal O Estado de S.Paulo: “não faço piada com Alá e Maomé, porque não quero morrer! Não quero que explodam a minha casa só por isso”.

O Brasil, no artigo 208 do Código Penal, adota uma régua mais liberal, pois o ato definido como crime é o de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. Não basta o simples ataque ou crítica; o vilipêndio vai muito além disso, sendo um grau mais forte de ofensa, e que precisa ser dirigido a um “ato ou objeto de culto”, o que inclui cerimônias e também personagens veneradas como sagradas por cada fé. Também não é nosso objetivo, neste espaço, avaliar se o vídeo do Porta dos Fundos efetivamente incorreu em desrespeito ao artigo 208 do Código Penal; mas, havendo quem considere que houve crime, é natural que os ofendidos recorram à Justiça, a quem cabe resolver a questão.

Até o momento, no entanto, as ações contrárias ao vídeo têm sido propostas na esfera cível, não na penal, embasadas, entre outros pontos, em textos constitucionais como o artigo 221, que inclui o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” como princípios da programação de emissoras de rádio e televisão no Brasil. O Ministério Público do Rio de Janeiro, por exemplo, emitiu parecer pela suspensão da veiculação, enquanto no Mato Grosso, onde houve pedido semelhante, a posição do MP foi contrária. Tribunais fluminenses e paulistas, até agora, têm decidido pela manutenção do vídeo na plataforma de streaming.

A liberdade de expressão, como sabemos, não é absoluta. Ninguém pode se escorar nela, por exemplo, para caluniar outra pessoa ou defender posturas ofensivas à dignidade humana, como o racismo. O ordenamento jurídico brasileiro decidiu, além disso, colocar alguns outros limites a essa liberdade, protegendo outros valores, como o sentimento religioso, mas estabelecendo a necessidade de a ofensa se revestir de maior gravidade que a mera crítica ou sátira. É por isso que não se pode simplesmente acusar de “censuradores” os cristãos que, ofendidos pelo conteúdo do vídeo, recorram à Justiça – direito, aliás, exercido por muitos outros grupos quando se julgam atacados –, e o epíteto tampouco serviria a um magistrado que, eventualmente, considerasse haver crime ou violação a princípios constitucionais. Essa atitude leva a uma banalização do termo “censura” (hoje usado levianamente até para descrever situações como a retirada de incentivo estatal a certas manifestações artísticas) e vai lentamente apagando a noção de, por mais valiosa que seja a liberdade de expressão, ela não legitima um “vale tudo”.

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