A política econômica petista tem dois momentos: no primeiro, que vai até meados do segundo mandato de Lula, houve a manutenção do tripé macroeconômico – responsabilidade fiscal com superávit primário, metas de inflação e câmbio flutuante – estabelecido durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso e que consolidou a estabilidade econômica, depois de muitos anos de hiperinflação. No segundo momento, o tripé foi substituído pela gastança indiscriminada, motivada pela crença no protagonismo do poder público como promotor do desenvolvimento, e que culminou na grande recessão de 2015-2016. Mas o governo federal não foi o único a gastar o que tinha e o que não tinha, como se não houvesse amanhã: ele também estimulou estados e municípios a fazer o mesmo, e agora a União paga a conta.
Reportagem da Gazeta do Povo mostrou que, desde 2016, a União já pagou R$ 46,5 bilhões para honrar dívidas contraídas e não pagas por estados e municípios. Os dados estão em relatório do Tesouro Nacional divulgado no início desde mês – só no primeiro semestre deste ano, os pagamentos foram de R$ 4,6 bilhões. Isso ocorre porque o governo federal é o fiador desses empréstimos, e fica legalmente obrigado a bancar os pagamentos quando o devedor dá o calote. Como se chegou a esse ponto? A resposta está no estímulo que o governo federal passou a dar, a partir de 2007 (ou seja, no início do segundo mandato de Lula), para que estados e municípios contraíssem empréstimos independentemente da solidez de sua saúde fiscal.
O caos fiscal vivido por alguns estados e municípios não foi criado pelo petismo, mas foi potencializado pela irresponsabilidade promovida a partir de 2007
Naquele ano, o processo de ajuste disparado com a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000, foi interrompido. No fim de 2006, a Petrobras confirmou a existência de petróleo na camada do pré-sal; em janeiro de 2007, o governo lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC); e, em outubro de 2007, o Brasil foi escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014. A euforia pode ser resumida no seguinte ciclo: estados e municípios poderiam contrair dívidas para realizar investimentos, que levariam ao crescimento econômico, proporcionando maior arrecadação, que permitiria a quitação dessas mesmas dívidas.
A União, mesmo ciente de que teria de arcar com eventuais inadimplências, apostou em um crescimento infinito da economia e avalizou empréstimos para estados e municípios com notas baixas em capacidade de pagamento (Capag), a ponto de, entre 2012 e 2014, o crédito concedido a entes subnacionais com Capag C ou D ser maior que o concedido a entes com Capag A ou B. O valor total dos empréstimos explodiu – e, pouco tempo depois, veio a recessão e, com ela, a inadimplência. A União, então, tentou compensar as perdas, bloqueando repasses dos fundos de participação de estados e municípios (FPE e FPM) para reaver os valores que precisou desembolsar na qualidade de fiador. Essa prática, no entanto, tem sido impedida por liminares do Supremo Tribunal Federal, deixando o governo federal sozinho com o prejuízo nas mãos.
Apesar da situação atual (ou talvez por causa dela, já que o STF tem mantido os repasses federais aos estados e municípios inadimplentes), os entes subnacionais continuam relutando em realizar seus respectivos ajustes fiscais, omitindo-se nas reformas de suas Previdências e até mesmo concedendo reajustes ao funcionalismo sem ter os recursos para tal, ou comprometendo os limites com pessoal determinados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. E, no início da pandemia de Covid-19, quase ganharam um belo presente do Congresso Nacional, pois um bom plano de recuperação fiscal dos estados, o Plano Mansueto, foi destruído e substituído por um texto que permitiria ainda mais endividamento tendo a União como fiadora e sem nenhuma contrapartida, com o pretexto do combate ao coronavírus. No fim, após muita pressão da equipe econômica, o plano de ajuda acabou aprovado sem este dispositivo.
O caos fiscal vivido por alguns estados e municípios – pois há, sim, bons exemplos Brasil afora – não foi criado pelo petismo, mas foi potencializado pela irresponsabilidade promovida a partir de 2007. No entanto, mesmo os governos posteriores não foram capazes de reverter o processo. O citado Plano Mansueto foi a melhor chance que o país teve, pois tinha a inteligência de exigir dos estados a implementação de medidas de ajuste como condição prévia à renegociação das dívidas, enquanto todos os outros regimes de recuperação deixam as contrapartidas estaduais para um segundo momento – foi assim que o Rio de Janeiro evitou ao máximo realizar a privatização da Cedae, sua empresa de saneamento básico, que era uma das exigências para a adesão do Rio ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF). Se não for capaz de eliminar o “risco moral”, incentivando ajustes fiscais estaduais e municipais, o governo federal continuará pagando a conta da gastança alheia por muito tempo.