“O establishment composto diretamente pelos empregados públicos, sindicatos, fornecedores, comunidades, políticos locais, partidos de esquerda e lideranças políticas tem sido uma barreira natural para a privatização”, escrevera Salim Mattar em 2020, ao deixar a Secretaria de Desestatização e Privatização do Ministério da Economia, frustrado com a lentidão e as fortes resistências ao processo de redução da presença estatal na economia. Na batalha pela privatização da Eletrobras, esse establishment foi finalmente vencido, mas exigiu um preço bastante caro da sociedade, que começa a ser cobrado em setembro.
Tirar a Eletrobras do controle do Estado significaria o fim do cabide de empregos, do uso político de nomeações para cargos de presidência, diretoria e gerência, e de diversas outras mazelas inerentes à essa distorção do real papel que o Estado deveria exercer na atividade econômica. O establishment citado por Mattar quando de sua saída do governo jamais deixaria que isso ocorresse sem uma “mordida” final, e os representantes desses grupos no Congresso agiram por meio da inserção de uma série de exigências que não constavam da medida provisória enviada por Jair Bolsonaro ao Congresso em fevereiro de 2021.
Um eventual encarecimento da energia elétrica terá se devido não à venda da Eletrobras, mas a todos os “jabutis” que o Congresso forçou goela abaixo do governo federal para que a privatização ocorresse
A intenção de não deixar a privatização ocorrer sem esse ato final de favorecimento ao establishment foi tanta que os congressistas tiveram a malícia de usar um truque sujo de redação legislativa. Em vez de os “jabutis” serem inseridos na forma de artigos, parágrafos ou incisos específicos, como de costume, eles foram todos costurados logo no primeiro artigo da lei de conversão, gerando um “textão” de 652 palavras onde antes havia apenas 29. Como consequência, Bolsonaro não poderia remover apenas os “jabutis”, pois vetar o parágrafo 1.º do artigo 1.º significaria vetar também a própria privatização – ou seja, uma autêntica chantagem legislativa. Isso levou até mesmo partidos e parlamentares de tendência indiscutivelmente liberal a votar contra o texto na Câmara, pois, se ele fosse derrotado, os deputados teriam de analisar a MP original, sem os penduricalhos. A tentativa, no entanto, fracassou, e a versão cheia de “jabutis” foi aprovada e sancionada.
Um desses “jabutis” prevê a contratação de 8 gigawatts (GW) em geração térmica – este é o leilão que está marcado para o próximo mês. O problema não está apenas na opção por uma forma de energia mais cara e poluente, mas principalmente no fato de que as usinas contratadas estarão em locais distantes dos centros produtores de gás natural, e onde ainda não há ligação por gasodutos, que, portanto, terão de ser construídos a um custo bilionário – sem falar também da estrutura de transmissão da energia que será gerada. Por fim, a decisão sobre as regiões contempladas foi puramente arbitrária, atropelando o planejamento setorial que já tinha a interiorização da oferta de gás como um objetivo, mas cuja execução estaria sujeita a vários outros fatores, como o aumento da demanda.
Não será uma surpresa se o custo dessa exigência criada por congressistas para atender sabe-se lá que interesses termine na conta de energia do consumidor brasileiro. Cálculos da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace) citados pela Gazeta do Povo indicam que o “jabuti das termelétricas” pode elevar as tarifas em 10% a partir de 2030. Já nas contas da Empresa de Pesquisa Energética, os “jabutis” todos (não apenas o das térmicas) aumentarão os custos de produção em R$ 52 bilhões até 2031.
A esquerda estatizante saliva só de pensar na possibilidade de o brasileiro pagar mais pela energia com a Eletrobras privatizada, pois terá pronto o discurso segundo o qual a culpa do aumento terá sido da privatização. Desde já é preciso desarmar essa bomba retórica, mantendo sempre na lembrança do brasileiro o fato de que um eventual encarecimento terá se devido não à venda da estatal, mas a todas essas inserções que o Congresso forçou goela abaixo do governo federal para que a privatização ocorresse. Que não nos esqueçamos dos parlamentares que redigiram os “jabutis”, que os aprovaram, e que derrubaram tentativas de removê-los da lei – será deles a responsabilidade caso a privatização não traga os ganhos que poderiam ter vindo caso o texto fosse aprovado sem a “mordida final” do establishment.
Hugo Motta troca apoio por poder e cargos na corrida pela presidência da Câmara
Eduardo Bolsonaro diz que Trump fará STF ficar “menos confortável para perseguições”
MST reclama de lentidão de Lula por mais assentamentos. E, veja só, ministro dá razão
Inflação e queda do poder de compra custaram eleição dos democratas e também racham o PT