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| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

O atual modelo de foro de prerrogativa de função – chamado popularmente de “foro privilegiado” –, previsto na Constituição Federal, está em xeque. O inchaço das hipóteses originais previstas na Carta e nas Constituições estaduais, aliadas à morosidade e à falta de estrutura e vocação das instâncias superiores para julgar certas causas, criou, na prática, uma casta de dezenas de milhares de pessoas quase imunes à atuação da Justiça. As estimativas variam entre 37 mil e 55 mil autoridades de todos os entes federados. Um arranjo que, ademais de não ter paralelo no mundo pelo número de beneficiados, tem criado dificuldades vergonhosas para a efetivação da lei no país.

Um relatório publicado pelo projeto “Supremo em Números”, da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ), mostra o tamanho do problema que o legislador constituinte acabou criando. Segundo o estudo, o tempo médio da tramitação das ações penais no Supremo Tribunal Federal (STF) têm crescido continuamente desde 2002; em duas de cada três ações penais o mérito da acusação nem chega a ser apreciado pela corte; apenas 0,61% dos crimes e 1,04% das ações penais resultam em condenação. O relatório destaca também que só 5,44% das ações penais que tramitam no tribunal envolvem ao menos um crime que tenha sido cometido em razão do cargo ou após a diplomação no cargo.

É necessário que os ministros encontrem uma fundamentação que não seja fruto do voluntarismo ou do casuísmo

Diante desse cenário pavoroso, que só perpetua a impunidade em um momento em que a sociedade brasileira exige, coberta de razão, o combate à corrupção e aos desmandos da classe política, o Supremo voltará a discutir, nesta quinta-feira (23), a extensão do foro de prerrogativa de função. A discussão foi remetida ao plenário pelo ministro Luís Roberto Barroso, que é relator da Ação Penal 937, na qual um ex-prefeito é processado por um crime cometido antes de sua diplomação como chefe do executivo municipal.

Barroso propôs, em voto apresentado ao pleno em maio deste ano, que “o foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas”, o que contraria, a princípio, a letra dos dispositivos constitucionais relevantes, a começar pelo artigo 53: “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Diante da clareza da redação da norma, os tribunais brasileiros, incluindo o Supremo, vinham interpretando a lei em seu sentido óbvio, que não faz menção ao momento em que se cometeu o crime ou às eventuais conexões dele com o mandato.

Opinião da Gazeta: O foro cai, mas o privilégio fic (editorial de 04 de junho de 2017)

Opinião da Gazeta: Esse tal foro privilegiado (editorial de 27 de fevereiro de 2017)

De fato, mesmo diante do problema que o modelo previsto criou, este é um tema que, por envolver as garantias constitucionais dos parlamentares, inscritas em normas em tese incontroversas, melhor seria resolvido pelo próprio Congresso Nacional, a partir da mobilização da sociedade brasileira e de lideranças políticas responsáveis. O fato não seria inédito. Até 2001, a redação original da Constituição condicionava o próprio início do processo contra parlamentares à autorização da Casa Legislativa – a chamada imunidade processual, que foi extinta pela Emenda 35/2001, depois de uma grande mobilização popular, que pressionou os congressistas a mudarem as regras do jogo.

No entanto, diante de mais uma omissão do Congresso Nacional, é possível que o STF tenha de decidir? Antes de tudo, é preciso ter clareza que a questão é delicada e complexa, o que convida os ministros ao sempre presente risco do ativismo judicial, que é tão pernicioso à democracia, no médio e no longo prazos, quanto outras disfuncionalidades. A mera mudança da conjuntura política e o clamor popular, por mais justificado que seja, não poderiam, em tese, suscitar uma reação episódica do STF em tema juridicamente sensível e de grandes repercussões institucionais e sociais.

Os fatos e as circunstâncias às vezes podem até fazer o tribunal reconhecer, em uma leitura mais atenta e profunda da Constituição, a necessidade de modificar uma posição tradicional – e talvez seja o caso aqui. Mas é necessário que os ministros encontrem uma fundamentação que não seja fruto do voluntarismo ou do casuísmo, como nem sempre o tribunal tem conseguido fazer. É preciso que os magistrados afastem da corte, de uma vez por todas, a percepção de que a lei está sendo torcida e retorcida de acordo com os fatos e ao sabor dos ventos. Momentos de crise exigem as mais rigorosas e bem fundamentadas decisões, sob pena de os tribunais perderem seu mais valioso esteio de legitimidade: a coerência no respeito à Constituição.

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