O debate sobre o orçamento federal no Congresso Nacional revela uma omissão lamentável: o que é, qual a função e quais os efeitos da política fiscal (arrecadação de tributos e gastos públicos) sobre a vida dos 213 milhões de brasileiros. O orçamento é a peça que estima as receitas e fixa as despesas, e a estrutura destas revela as consequências sobre a população.
Quando se fala em orçamento público no Brasil e suas consequências sobre a economia e o bem-estar social médio, o que está em jogo é principalmente, além de outras questões, as receitas com arrecadação de tributos pelos 5.570 municípios, 26 estados, Distrito Federal e União federal. É possível o ente estatal adicionar receitas no orçamento por meio de privatização de empresas estatais, recebimento de aluguéis derivados do uso de bens públicos por terceiros e empréstimos de longo prazo; mas essas não são receitas tributárias correntes. As receitas tributárias sozinhas têm uma significação especial por constituírem o maior valor do orçamento, por representarem a retirada de uma fração da renda das pessoas e das empresas, e porque são elas que dão a base dos investimentos e dos serviços prestados pelo governo.
O governo em seu conjunto, nas três esferas da Federação e nos três poderes, direciona os rumos da produção e da renda nacional quando arrecada tributos e também quando realiza gastos em serviços e investimentos. Para começar, não existe orçamento público neutro em relação à promoção ou contenção do crescimento do produto total do país. Ao comparar dois ou mais orçamentos possíveis, o que se tem são hipóteses diferentes de interferência na composição do Produto Interno Bruto (PIB), na taxa de crescimento desse mesmo PIB, na distribuição da renda total que deriva do processo produtivo e nas escolhas alternativas entre serviços públicos e investimentos públicos. Vale lembrar ainda que, como a maior massa de gastos do setor estatal é com salários e benefícios de seus próprios servidores, um governo pode, pelo menos em tese, optar por usar o orçamento prioritariamente para aumentar a remuneração de todos os que já estão no serviço público, de forma que, mesmo gastando mais, não aumente os serviços públicos nem as obras.
O Brasil tem uma combinação perversa de carga tributária elevada, baixo investimento público em infraestrutura, serviços públicos de baixa qualidade, categorias privilegiadas com alta remuneração e um enorme grau de corrupção
O sistema estatal se vê eternamente diante de duas grandes opções na definição do orçamento: mais investimento ou mais gastos sociais; se mais de um, menos de outro. Adicionalmente, tomando o total do orçamento como dado, dentro da mesma escolha – por exemplo, mais gastos sociais e menos obras – o governo pode priorizar gastos que beneficiem as camadas mais pobres ou não. Por história, sabe-se que gastos com educação básica, saúde, saneamento, habitação popular e programas de auxílio às populações de renda mais baixa exercem efeito que, em país subdesenvolvido, é sempre desejável e diminui a miséria e a pobreza.
Mas o Brasil é o país das anomalias e das distorções econômicas. Nos últimos 70 anos, o setor estatal como um todo caracterizou-se por priorizar obras de infraestrutura e criar empresas estatais, em boa parte com méritos visíveis para impulsionar o crescimento. Porém, dados os limites óbvios, os gastos sociais receberam menos recursos que o necessário para uma redução expressiva da pobreza e da desigualdade de renda.
Três anomalias se tornaram claras, reconhecidas por analistas do próprio governo federal, como é o caso do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A primeira é a apropriação de elevadas fatias do orçamento governamental por corporações nos três poderes, com remunerações e benefícios muito acima do padrão econômico do país e, em alguns casos, até maiores que as médias de países desenvolvidos cuja renda por habitante é quatro ou cinco vezes a brasileira. A segunda foi o surgimento de centenas de empresas estatais ineficientes, que passaram a sugar parcela substancial do gasto público apenas para se manterem vivas e praticamente sem função positiva para a atividade econômica. São as tais “estatais dependentes” do tesouro público que, uma vez criadas, parecem ter vida própria e ninguém consegue lhes dar um fim, vendendo-as ou fechando-as. A terceira anomalia é um elevado grau de ineficiência derivado do inchaço das repartições públicas, da excessiva burocracia estatal, da baixa produtividade de parcela dos funcionários públicos e da tão presente e renitente corrupção entranhada na máquina estatal desde que ela existe.
Claramente, mais que da reforma tributária – embora esta seja sumamente importante –, o Brasil necessita de uma ampla reforma da própria estrutura estatal, ainda que isso seja um sonho quase impossível. Quando o ministro Paulo Guedes mencionou que o Brasil deveria pensar em extinguir os municípios com menos de 5 mil habitantes (que, segundo as primeiras informações, são 1,2 mil do total de 5.570 municípios), incorporando-os aos municípios maiores próximos, a ideia foi enterrada em poucas semanas e não se falou mais nisso. A questão nem é saber se isso é bom ou ruim; a questão é recusar o debate e a simples discussão do problema.
A discussão orçamentária no Brasil virou um evento de pobreza política e intelectual, como de resto os grandes problemas estruturais que orbitam em torno do orçamento do sistema estatal não têm recebido a atenção que exigem. Infelizmente, o esquecimento de certos aspectos sobre o orçamento público contribui para o Brasil ter uma combinação perversa de carga tributária elevada, baixo investimento público em infraestrutura, serviços públicos de baixa qualidade, certas categorias privilegiadas com alta remuneração e benefícios exagerados (categorias essas convivendo com amplas faixas de servidores públicos mal remunerados, a exemplo de professores e policiais) e um grau de corrupção muito acima de qualquer padrão aceitável.
As mesmas anomalias na discussão orçamentária estão presentes no debate sobre a reforma tributária. A grande briga tem sido entre municípios, estados e União, em função do conflito entre eles na repartição do bolo tributário. Se a iniciativa privada ficar de fora, os entes públicos vão se acertar... e a população pagará a conta em forma de aumento da carga tributária. Assim tem sido e nada indica que desta vez será diferente.