Com a apresentação do relatório de Renan Calheiros (MDB-AL), a CPI da Covid se encaminha para o ato final. O texto, de centenas de páginas, será votado na próxima terça-feira, dia 26, em uma sessão que ainda poderá ter a leitura de um “relatório paralelo” – o que o jargão legislativo chama de “voto em separado” – preparado por senadores que não se alinharam com o G7, o grupo que dominou a comissão e é formado por opositores do governo de Jair Bolsonaro. A repercussão da CPI da Covid pode ser comparada à de outras comissões que marcaram a história recente do país, mas disso não se pode concluir automaticamente que a substância seja proporcional à atenção midiática que recebeu.
De antemão, é preciso salientar que a comissão esteve muito longe de ser conduzida com a imparcialidade necessária a esse tipo de apuração. O G7, formado inclusive por algumas das figuras mais nefastas da vida política nacional, como Calheiros, trouxe para a CPI uma série de teses prontas sobre os mais diversos temas ligados à pandemia – da culpa de Bolsonaro à ineficácia do “tratamento precoce” – e tratou de forma bastante diferente os convidados, dependendo das suas posições. A quem discordasse do grupo majoritário estiveram reservados o desrespeito, a grosseria (como puderam perceber, por exemplo, as médicas Mayra Pinheiro e Nise Yamaguchi) e o arbítrio (como na prisão de Roberto Ferreira Dias).
As conclusões da CPI, inclusive quanto à responsabilização das 66 pessoas cujo indiciamento é recomendado, são essencialmente políticas
A CPI causou enorme dano à liberdade de expressão e ao bom debate científico, por exemplo, quando assumiu de antemão que o tratamento precoce é ineficaz, em vez de tratá-lo como sendo de eficácia ainda não comprovada, uma distinção que já esclarecemos em várias oportunidades neste espaço. Esta convicção formada antes mesmo que os trabalhos da CPI tivessem se iniciado esteve por trás de episódios deploráveis, como aquele em que senadores abandonaram a sessão em que médicos favoráveis ao tratamento precoce seriam ouvidos. Ainda mais grave foi a alegação de que a defesa do tratamento precoce consistiria em fake news, associação que embasou uma série de requerimentos de quebra de sigilo, violência que em muitos casos acabou referendada, depois, pelo Supremo Tribunal Federal.
Isso não significa, no entanto, que em meio a todo este circo não tenham emergido informações importantes. A CPI teve papel relevante na apuração das circunstâncias em que foi negociada a aquisição de vacinas – que, como se pode perceber agora, estão proporcionando ao país a porta de saída da pandemia e a normalização das atividades. Ela foi palco de denúncias que exigirão maior apuração por parte dos órgãos competentes para tal. Mas qualquer desdobramento da CPI e das recomendações feitas em seu relatório final exigirá passar do campo político para o campo técnico e jurídico.
- A CPI da Covid e a intimidação contra a imprensa (editorial de 2 de agosto de 2021)
- A caça às bruxas contra os médicos e o “tratamento precoce” (editorial de 4 de outubro de 2021)
- Machismo e truculência na CPI (editorial de 9 de junho de 2021)
- Prisão e teatro na CPI (editorial de 8 de julho de 2021)
Afinal, é preciso recordar que as conclusões da CPI, inclusive quanto à responsabilização das 66 pessoas cujo indiciamento é recomendado, são essencialmente políticas. Quanto ao presidente Jair Bolsonaro, para que nos atenhamos ao principal alvo de acusações vindas de Calheiros, é notório que ele desrespeitou protocolos de segurança contra a Covid ao desprezar o uso de máscaras e promover aglomerações, ou que minimizou a importância das vacinas em diversas ocasiões. Ao longo da pandemia, o presidente notabilizou-se por uma série de atitudes e declarações bastante problemáticas, demonstrando até mesmo falta de empatia com as vítimas da Covid e suas famílias. No entanto, que essa postura seja moralmente reprovável não necessariamente significa que ela seja juridicamente passível de responsabilização diante de um tribunal, como pretende o relator da CPI. Esta é avaliação que cabe, acima de tudo, à Procuradoria-Geral da República, no caso dos crimes comuns atribuídos a Bolsonaro no relatório final, e aos demais ramos do MP em relação a investigados que não tenham prerrogativa de foro.
É à PGR e aos demais ramos do MP que caberá conduzir com a necessária imparcialidade e apuro técnico-jurídico a continuação daquilo que surgiu dentro de um ambiente repleto de parcialidade, mas que pode, sim, conter acusações que se mostrem verdadeiras. Em uma pandemia que pegou o mundo de surpresa e para a qual todas as respostas – lockdowns, medicamentos, distanciamento, e mesmo as vacinas – eram e são experimentais. Nestas condições, é muito provável que ocorram erros na condução do combate à Covid-19, alguns deles com consequências bastante graves e que podem cruzar a fronteira que delimita o crime. Esta definição, no entanto, exigirá muito mais serenidade em comparação com o que se viu até o momento.