Na noite de Natal, a juíza Viviane Arronenzi, do Rio de Janeiro, foi assassinada com 16 facadas pelas mãos do seu ex-marido, Paulo José Arronenzi. O crime aconteceu na frente das três filhas do casal — duas meninas de 7 anos e uma outra, de 9. O caso, compreensiva e justamente, causou uma mistura de indignação e horror na sociedade. Tal barbaridade não pode passar impune. Este não apenas foi o sentimento da população, mas também o das autoridades e das entidades representativas da magistratura. Várias delas, incluindo a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), divulgaram notas em que pediam o “rigor da lei” contra o criminoso.
Não se questiona a necessidade de garantir que o rigor da lei seja aplicado a autores de casos como o da magistrada – e não só a eles. A dúvida que se forma a partir dessa situação, no entanto, é outra: há rigor no sistema jurídico brasileiro, seja nos casos bárbaros de repercussão nacional, seja para os demais crimes que ocorrem diariamente no Brasil? O fato é que o “rigor” exigido pela AMB não é tão fácil assim de ser obtido.
Infelizmente, podemos dizer que a punição, no Brasil, só acontece quando o culpado tem muito azar. No caso de Viviane Arronenzi o assassino está devidamente identificado, mas esta é uma exceção. Levantamento de 2016 revelou que 62% dos casos de homicídio no Brasil eram arquivados por falta de provas – e, se isso ocorre com os homicídios, imagine-se qual será a taxa de resolução de outros tipos de crimes. Mesmo quando o assassino é identificado, apenas 5% de todos os inquéritos chegavam ao júri e recebiam uma sentença.
A lei brasileira oferece todo tipo de obstáculo para que um assassino vá para trás das grades ou permaneça ali por um bom tempo
E esse número pode até mesmo diminuir, posto que novidades como as audiências de custódia e a figura do “juiz de garantias”, inovação criada pelo Congresso na aprovação do pacote anticrime, tendem a filtrar ainda mais o número de criminosos que chegam à prisão. No Rio de Janeiro, por exemplo, 32% dos presos em flagrante entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020 foram soltos pelas audiências de custódia, número que subiu a quase 50% durante os meses da pandemia.
E, mesmo que o criminoso seja identificado, capturado, julgado e condenado, ele ainda pode contar com uma série de dispositivos em seu favor. A lei brasileira oferece todo tipo de obstáculo para que um assassino vá para trás das grades ou permaneça ali por um bom tempo. A Constituição, no artigo 5.º, XLVII, b, afirma que “não haverá penas de caráter perpétuo”, texto que é lido não apenas como a vedação da prisão perpétua propriamente dita, mas também como um impedimento para penas muito longas, que, mesmo com duração definida, extrapolariam a expectativa de vida do condenado. A nova redação do Código Penal Brasileiro afirma que o termo máximo de prisão em regime fechado é de 40 anos, dez a mais que o limite anterior, de 30. Contudo, se o culpado for condenado a mais de 40 anos de prisão por penas diversas, estas deverão ser unificadas numa única pena, com este mesmo limite.
E, mesmo uma condenação é severa acaba sendo abrandada com o passar do tempo. Apesar de algumas mudanças efetuadas pela Lei 13.964/19, o sistema penal brasileiro ainda é “progressivo” e se divide em regime fechado, semiaberto e aberto. No atual modelo, cumpre-se 16% da pena em regime fechado, caso o réu seja primário. Se for reincidente em crimes sem violência ou sem ameaça grave, sobe-se para 20% da pena. Já se for reincidente de réu condenado por crime com ameaça grave, a porcentagem sobe para 30%. Se o apenado for primário, mas condenado por crime hediondo, 40% – e, finalmente, 50%, 60% e 70% se o apenado for, respectivamente, primário em crime hediondo que resulta em morte ou condenado por comando de organização e milícia criminosa; se for reincidente em crime hediondo; e se for reincidente em crime hediondo que resulta em morte. Em outras palavras, ninguém fica na prisão pela duração completa da pena a que foi condenado, por mais grave que seja o seu ato e por pior que seja seu histórico de crimes.
Tecnicamente, o princípio da progressão de pena serviria para aumentar a severidade do cumprimento da pena. Segundo Ney Moura Teles, em seu livro Direito Penal, o regime progressivo baseia-se num princípio “democrático” de aplicação de lei. Mas a realidade é que, em seu atual formato, entende-se que a verdadeira pena é aquela cumprida antes da progressão, e não a pena em sua totalidade. Mesmo nos casos célebres, de apenados por crimes hediondos de grande repercussão – como o casal Nardoni; os assassinos do menino João Hélio; ou Suzane von Richthofen e seus cúmplices, os irmãos Cravinhos –, observaremos que não se cumpriu nem metade do tempo previsto pela condenação dentro do cárcere.
No caso dos Nardonis (condenados pela morte da pequena Isabella, 7 anos, arremessada do sexto andar do edifício onde vivia com os pais), Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá foram condenados respectivamente a 31 e 26 anos de prisão em regime fechado, em 2010. Apenas sete anos depois, Anna conseguiu progressão para o regime semiaberto (apesar de ter perdido o direito em junho de 2020, quando foi flagrada com os filhos dentro da penitenciária onde cumpre pena); em 2019, foi a vez de Alexandre. Já os cinco assassinos de João Hélio, arrastado por 7 quilômetros pelas ruas do Rio de Janeiro após o roubo do carro dos pais em 2007, estavam nas ruas 12 anos depois do crime, apesar da condenação a mais de 40 anos de prisão. A mesma lógica serve no caso do assassinato dos pais de Suzane von Richthofen: condenados em 2006 a penas de 39 anos, os irmãos Cravinhos passaram ao semiaberto em 2013; Suzane recebeu o privilégio no ano seguinte.
É simplista enxergar o sistema progressivo de penas e o resguardo de direitos fundamentais para acusados e apenados como mera benesse para proporcionar vida fácil aos condenados: ele é, na verdade, parte de um sistema saudável, que o cumprimento dos direitos humanos exige que exista. O Brasil não é o único país que aposta na progressão de pena: nações do chamado primeiro mundo também adotam variantes desse modelo, como são os Estados Unidos, o Canadá, a Finlândia e a Alemanha. Mas nenhum desses países trata o preso com tanta parcimônia como o Brasil – que, além da progressão de pena, ainda tem indultos, “saidinhas” e várias outras medidas para aliviar o fardo da prisão.
Conseguimos transformar o sistema penal brasileiro em algo que não inspira temor no delinquente, justamente porque não há rigor na aplicação da pena
Na Alemanha, por exemplo, a pena máxima é a prisão perpétua, que pode ser progredida para condicional após 15 anos de cumprimento. Porém, em caso de reincidência, o preso perde o direito à progressão, ficando o resto da vida atrás das grades. Nenhuma dessas nações citadas, aliás, está entre as 15 que mais registram homicídios no mundo, conforme pesquisa feita pelo Instituto Igarapé em 2018. Enquanto isso, naquele ano, o Brasil teve 57.395 mil assassinatos, número que caiu 19% em 2019, mas que voltou a crescer durante o primeiro semestre de 2020: foram 25.712 vítimas nos seis primeiros meses do ano passado.
A realidade objetiva é que conseguimos transformar o sistema penal brasileiro em algo que não inspira temor no delinquente, justamente porque não há rigor na aplicação da pena, fazendo das punições previstas no Código Penal uma ficção, já que nunca são aplicadas em sua integridade. A AMB, assim, pode até exigir o “rigor da lei”, mas sua aplicação tem muito pouco de rigorosa. Como esperar justiça para as vítimas – não só para a juíza Viviane, ou Isabella Nardoni, ou João Hélio, ou os pais de Suzane von Richthofen, mas para todas as vítimas de homicídios, estupros, agressões e roubos Brasil afora – se seus algozes dificilmente são presos e, quando isso ocorre, raramente pagam integralmente sua dívida com a sociedade?
O principal problema do Brasil, do ponto de vista do crime, é que somos muito lenientes para com malfeitores. Por isso mesmo, não se censuram na hora de cometer seus delitos. Tivesse o imortal Cesare Beccaria, pilar da Escola Clássica de Direito Penal, nascido no Brasil, teria de fazer um acréscimo ao seu famoso adágio segundo o qual o bandido é inibido não tanto pela severidade da pena, mas pela certeza da punição. Porque, entre uma coisa e outra, existe a questão de cumprir a pena até o término previsto. E isso, no Brasil, ainda é um mito.
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