A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tomou, nesta terça-feira (26), uma decisão delicada, que merece análise cuidadosa. Com o voto de três dos cinco ministros do colegiado, o senador Aécio Neves (PSDB-MG) teve seu mandato parlamentar suspenso. Em que pese a vontade inegável da sociedade brasileira de que os poderes constituídos consigam resolver a crise política que se arrasta interminável, as soluções aventadas pelos agentes públicos, incluindo juízes e promotores, não devem contrariar a Constituição Federal.
Quando a Carta de 1988 foi promulgada, o poder constituinte originário fez uma escolha clara e bastante concreta para a proteção do mandato dos representantes investidos da representação popular. Não é o único modelo institucional possível, mas é, afinal, o que está na Constituição. Tampouco se nega que a sociedade tenha a pressa e também a confiança de que o Congresso consiga se livrar de parlamentares envolvidos em atos ilícitos. Mesmo o modelo atual pode ser modificado por emenda constitucional, se a sociedade assim julgar necessário e se manifestar nesse sentido.
A decisão contraria a letra e o espírito da Constituição e abre mais precedentes perigosos em uma matéria tão cara à democracia e à separação dos poderes
No modelo atualmente em vigor, é bastante claro o que decorre da leitura dos dispositivos relevantes para o caso e da própria jurisprudência do STF: a decisão final sobre o exercício dos mandatos de senadores e deputados deve ser dada por seus próprios pares, pelo pronunciamento de maioria da Câmara ou do Senado. Não cabe aos juízes ter a palavra final sobre isso enquanto o mandato parlamentar não cumprir seu curso ou o próprio Congresso se manifestar sobre o caso.
O artigo 55 da Constituição Federal elenca as hipóteses em que deputados ou senadores perderão seus mandatos, sendo uma delas a “condenação criminal em sentença transitada em julgado”. Mesmo nessa situação de extrema gravidade, o parágrafo segundo do mesmo dispositivo da Constituição garante que “a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada a ampla defesa”.
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Os parlamentares também não podem ser presos senão em circunstâncias excepcionais. Embora o Código de Processo Penal diga, em seu artigo 312, que “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”, a Constituição cria uma exceção cristalina na incidência dessa norma sobre os representantes eleitos do povo. Conforme o parágrafo segundo ao artigo 53 da Carta de 1988, “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.
Com base na leitura do artigo 53, argumenta-se às vezes que o Supremo estaria diante de um “vácuo constitucional” criado a partir da reforma do Código de Processo Penal, que, em 2011, passou a prever, no artigo 319, “medidas cautelares diversas da prisão”. Duas delas foram impostas a Aécio Neves: a “suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais” e o “recolhimento domiciliar no período noturno”.
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O pulo do gato, porém, é que a consequência prática de uma suspensão do mandato, nesses termos, é a mesma de sua cassação: impedir o trabalho do parlamentar e a manifestação da vontade popular representada por ele. Sendo assim, há uma regra clara sobre privar deputados e senadores do exercício de seus mandatos, seja cassando-os, seja suspendendo-os: é o artigo 55 da Lei Maior. Não há vácuo algum a ser preenchido nesse caso. É a lei que deve ser lida à luz da Constituição, não o contrário. A decisão da Primeira Turma contraria a letra e o espírito da Carta de 1988, subvertendo completamente o escopo da proteção peculiar aos mandatos.
A decisão também abre mais precedentes perigosos em uma matéria tão cara à democracia e à separação dos poderes, criando possibilidades de atritos severos entre os poderes e até de desautorização do próprio Judiciário. Se, como os próprios ministros concordam, Aécio Neves não poderia ser preso senão em “flagrante de crime inafiançável”, então o tribunal estaria manietado se o senador resolvesse simplesmente descumprir a decisão? E mais: estando suspenso, embora sequer julgado, Aécio Neves poderá concorrer a cargos públicos nas eleições de 2018? O Senado vai sustar a decisão dos ministros, invocando a competência prevista no artigo 53? A decisão criou as condições para novos atos de desobediência a decisões judiciais. Como o Supremo resolveria eventuais impasses? O imbróglio não estaria armado se a Primeira Turma tivesse respeitado a Constituição.
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