Dois meses depois de a Câmara dos Deputados aprovar com ampla margem o Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 98/2023, que reverte mudanças feitas por Lula no Novo Marco do Saneamento, o texto finalmente irá ao plenário do Senado. O presidente da casa legislativa, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), incluiu o PDL na pauta de quarta-feira, dia 5. Se passar também pelo crivo dos senadores, ele trará de volta boas regras de governança que o petista havia demolido em abril, com o objetivo de permitir que estatais que tiveram décadas para comprovar sua ineficiência na oferta de água tratada e coleta de esgoto pudessem continuar prestando serviços de forma precária.
O Senado tem sido bem mais dócil ao governo que a Câmara: assuntos de interesse de Lula têm trânsito fácil na casa, que acaba de aprovar, por exemplo, a indicação do advogado pessoal do ex-presidente para o Supremo Tribunal Federal. Por outro lado, o que desagrada o Planalto costuma acabar freado ou represado por Pacheco. Assim, o fato de o PDL 98 ter sido colocado em pauta, ainda por cima com perspectiva de aprovação, dá uma boa ideia do disparate que representaram os decretos de Lula que agora se tenta derrubar. Não se tratou apenas de um ato do Executivo que atropelou completamente as prerrogativas do Legislativo, mas da negação completa do espírito da lei aprovada em 2020, com consequências muito deletérias para as populações que têm sofrido com serviços ruins e seriam privadas da oportunidade de, finalmente, terem acesso a um direito básico oferecido por um prestador mais eficiente.
O fato de o PDL 98 ter sido colocado em pauta no Senado, bem mais dócil a Lula, ainda por cima com perspectiva de aprovação, dá uma boa ideia do disparate que representaram os decretos presidenciais
Em resumo, o que Lula e o PT fizeram com os decretos de abril foi mostrar que, na escala de valores do petismo, empresas estatais são mais importantes que os pobres a quem é negado o acesso a água tratada e esgoto coletado, e que por isso ficam sujeitos a mazelas como doenças fatais que poderiam ser facilmente evitáveis caso o serviço estivesse sendo prestado com qualidade – essa convicção é tão arraigada que Lula se recusou a alterar os decretos mesmo após ser avisado por Arthur Lira, presidente da Câmara, que o governo seria derrotado na votação do PDL. Além disso, o governo colocou em risco bilhões de reais em investimentos potenciais na área de saneamento, ao lançar o setor na insegurança jurídica completa com a alteração das regras do novo marco legal. Ao menos até o momento, tudo isso tem pesado também para os senadores, que não se deixaram convencer pelos argumentos dos ministros chamados a participar de audiências públicas, nem pela possibilidade de envio de um projeto de lei ao Congresso, sugerida pelos articuladores do Planalto.
Em sua ânsia por reverter tudo que os governos anteriores tenham promovido e aprovado – da autonomia do Banco Central à reforma trabalhista –, o petismo é incapaz de enxergar o tamanho do avanço promovido pelo Novo Marco do Saneamento. A universalização dos serviços de água e esgoto é meta que o país tem de perseguir se quiser um dia se juntar ao clube dos países desenvolvidos; nenhuma nação rica deixa seus cidadãos convivendo com esgotos a céu aberto. A nova lei trouxe regras de governança bastante razoáveis, que buscam tirar do páreo empresas comprovadamente ineficientes e fomentam a entrada de novos atores privados, com experiência comprovada e capacidade financeira de trazer os bilhões de reais que a universalização exigirá.
A não ser que Pacheco resolva agradar o governo e retirar o PDL 98 de pauta no último momento, os senadores – especialmente aqueles que representam estados com as piores coberturas de água e esgoto, que em alguns casos não chegam nem a 10% da população – serão chamados a dizer de que lado estão e o que desejam para seus eleitores: a perpetuação de uma situação inaceitável ou a perspectiva de um avanço civilizacional. Que a tendência atual, de aprovação do PDL 98, se confirme na quarta-feira, mostrando que uma vida digna aos mais miseráveis é muito mais importante que a preservação de empresas ineficientes para servirem de cabide de emprego a camaradas ideológicos.