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| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

A presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, pautou para o dia 2 de maio a continuação do julgamento que determinará o alcance da prerrogativa de foro – popularmente conhecida como “foro privilegiado” –, instrumento que dá a detentores de vários cargos o direito de serem julgados por tribunais superiores e Tribunais de Justiça estaduais, dependendo do posto que ocupam. Mas não existe mistério algum no ar: a maioria a favor de restrições ao foro privilegiado já estava formada quando o ministro Dias Toffoli pediu vista, em novembro do ano passado.

Hoje, qualquer crime cometido por um detentor de foro privilegiado, independentemente de sua natureza ou da época em que ocorreu, é julgado pela instância correspondente – por exemplo, o Supremo Tribunal Federal em casos de deputados federais e senadores. Se um investigado ou réu que não tinha prerrogativa de foro a adquire durante o andamento do processo, seja por eleição ou nomeação, os autos são remetidos ao tribunal previsto na legislação. Quando coube a Luís Roberto Barroso analisar uma ação por compra de votos contra o atual prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos Mendes (PMDB), que já passou por várias instâncias devido aos cargos ocupados pelo réu – ele chegou a assumir cadeira na Câmara como suplente de Eduardo Cunha –, o ministro resolveu levar o tema para análise do plenário.

O país não pode esperar enquanto vê políticos reconhecidamente corruptos escapando da lei por abusar do foro privilegiado

Na qualidade de relator, Barroso propôs uma restrição do foro privilegiado que valeria apenas para deputados federais e senadores. Eles só seriam julgados pelo Supremo pelos crimes cometidos no exercício do mandato e que tenham relação com a atividade parlamentar. Em qualquer outra situação, o processo correria na primeira instância. Essa tese ganhou o apoio de mais seis ministros: Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber, Celso de Mello, Marco Aurélio Mello e Cármen Lúcia. A única divergência até o momento veio de Alexandre de Moraes, para quem o Supremo só deve julgar os crimes cometidos durante o mandato do parlamentar, mas independentemente de sua natureza. Ainda não votaram Toffoli, Ricardo Lewandoswki e Gilmar Mendes. Uma vez encerrado o julgamento, os ministros ainda poderão rever o alcance da decisão, por exemplo ampliando-a para outras autoridades, como ministros de Estado.

Mas tal restrição encontra amparo no texto constitucional? O artigo 53, parágrafo 1.º, da carta magna diz que “os deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”, sem explicações adicionais. A redação atual, de 2001, apenas altera o marco temporal para o início do foro privilegiado para a expedição do diploma; já em 1988 o constituinte tinha definido que “os deputados e senadores serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”.

Como o artigo 53 não faz nenhuma ressalva, a interpretação segundo a qual o foro privilegiado alcança quaisquer crimes, cometidos a qualquer momento, desde que o investigado ou réu ocupe cadeira de deputado ou senador, é aceitável. Mas também consideramos plenamente legítimas tanto a interpretação dada por Alexandre de Moraes quanto a que já se tornou majoritária dentro do Supremo (a de que a prerrogativa de foro se refere aos crimes cometidos durante o mandato e a ele relacionados). E, em socorro desta última, vem aquilo que o constituinte tinha em mente ao estabelecer a regra consagrada no texto constitucional.

Leia também: Esse tal foro privilegiado (editorial de 27 de fevereiro de 2017)

Leia também: O foro é mesmo o problema? (artigo de Rodrigo Cyrineu, publicado em 23 de abril de 2018)

O constituinte certamente não pretendia que políticos pulassem de cargo em cargo, arrastando seus processos de uma corte para outra, como foi o caso que deu origem à ação relatada por Barroso; nem que as acusações terminassem em impunidade graças à prescrição. No entanto, é isso que vem ocorrendo não pelo uso, mas pelo abuso da prerrogativa de foro. O Supremo, transformado também em tribunal penal pelo concerto elaborado na Constituição, se encontra abarrotado de ações contra detentores de mandato por acusações de crimes ocorridos em circunstâncias alheias ao exercício do mandato, seja na sua temporalidade, seja na sua natureza. Esse acúmulo é receita certa para a impunidade via prescrição, até porque os réus também têm à disposição uma infinidade de recursos dos quais os já famosos “embargos dos embargos” são apenas uma fração.

Assim, para assegurar que a impunidade não prevaleça e que se restabeleça a certeza de que os políticos culpados efetivamente pagarão por seus crimes, a limitação do foro privilegiado se impõe, amparada pela intenção do constituinte ao elaborar este dispositivo. Em seu voto, a ministra Rosa Weber afirmou que a prerrogativa de foro “só encontra razão de ser na proteção à dignidade do cargo, e não à pessoa que o titulariza”. Essa proteção do cargo não se estende a crimes cometidos pelo parlamentar antes de ter sido eleito, ou que não tenham relação com o exercício do cargo. Mas, quando a regra serve mais para proteger a pessoa que o posto por ela ocupado, o que se tem visto é justamente o contrário daquilo que o constituinte pretendia para o Brasil.

Evidentemente, ainda que esta seja uma interpretação permitida pelo texto constitucional, é preciso reconhecer que ela chega perigosamente perto dos limites que separam as leituras lícitas da carta magna e o “ativismo judicial”, em que juízes começam a fazer a lei, em vez de interpretá-la. Por isso, o cenário ideal seria aquele em que o Congresso legislasse sobre o tema. Ali tramita uma PEC segundo a qual apenas o presidente da República, seu vice, e os presidentes da Câmara, Senado e Supremo manteriam o foro privilegiado, enquanto outras 54 mil autoridades o perderiam. Mas, atualmente, em virtude da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, as votações de PECs estão suspensas. E o país não pode esperar enquanto vê políticos reconhecidamente corruptos escapando da lei por abusar do foro privilegiado. A atuação do Supremo é necessária e bem-vinda nestas circunstâncias.

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