O mundo jornalístico e quaisquer brasileiros preocupados com a situação das liberdades democráticas no país têm bons motivos para estar alarmados com a recente tese fixada pelo Supremo Tribunal Federal a respeito da publicação de entrevistas que contenham declarações potencialmente ofensivas à honra de terceiros. Na esteira da condenação do Diário de Pernambuco por uma entrevista publicada em 1995, a corte fixou uma tese que é curta e, justamente por isso, vaga e ambígua, abrindo espaço para a relativização e até mesmo a abolição da liberdade de imprensa constitucionalmente garantida no artigo 220 e em vários incisos do artigo 5.º da Carta Magna.
No caso concreto analisado pela corte, o jornal pernambucano havia publicado uma entrevista na qual o delegado Wandenkolk Wanderley afirmava que o ex-deputado Ricardo Zarattini Filho havia participado do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, no Recife, em 1966, que tinha como alvo o então ministro do Exército, Arthur da Costa e Silva. Zarattini chegou a ser preso em 1968, mas posteriormente soube-se que já naquela época os militares estavam cientes de sua inocência. Zarattini processou o jornal, que venceu nas instâncias inferiores, mas foi derrotado no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo (a essa altura, tanto o ex-deputado quanto o delegado já haviam falecido). Pode-se até argumentar que, sendo o jornal corresponsável pelo que decide publicar, haveria elementos concretos que justificassem a indenização, como o fato de já se saber, quando da publicação, que Zarattini era inocente, e de ele não ter sido procurado pela reportagem; o que não existia era justificativa para o Supremo elaborar uma tese que valerá para todos os casos envolvendo entrevistas a serem julgados no futuro, muito menos nos termos em que ela foi definida.
Acreditar que as duas ressalvas incluídas na tese do STF bastarão para proteger o trabalho jornalístico responsável é de uma enorme ingenuidade
A tese admite “a possibilidade posterior de análise e responsabilização, inclusive com remoção de conteúdo, por informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas, e em relação a eventuais danos materiais e morais”, mas afirma que “na hipótese de publicação de entrevista em que o entrevistado imputa falsamente prática de crime a terceiro, a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”. Acreditar que as duas ressalvas bastarão para proteger o trabalho jornalístico responsável, no entanto, é de uma enorme ingenuidade, tanto pelos aspectos teóricos quanto práticos, e as entidades representativas de jornalistas (como a Fenaj e a Abraji) e de empresas jornalísticas (como a ANJ) perceberam isso, fazendo uma crítica unânime que variou apenas em seu grau.
Como pontuou a Associação Nacional de Jornais (ANJ), há dúvidas pertinentes sobre como o Judiciário interpretará a existência de “indícios concretos de falsidade” e se um jornal realmente observou o “dever de cuidado”. Esta é uma análise necessária quando se julgam ações contra veículos de comunicação por possíveis crimes contra a honra; o problema está na possibilidade de magistrados deixarem de lado todos os critérios consagrados pela doutrina e pela jurisprudência e se pautarem pela discricionariedade total, como infelizmente tem sido a praxe dos tribunais superiores, abrindo as portas para abusos. Além disso, há inúmeros casos em que as denúncias feitas pela imprensa nem sequer têm como ser comprovadas pelos jornalistas, mas apenas com investigação posterior pelas autoridades policiais ou o Ministério Público. As dúvidas não terminam aí: como lidar com entrevistas ao vivo? Um jornal poderia dar voz a um entrevistado que lembre crimes devidamente comprovados, mas que na Justiça não foram punidos pela prescrição ou por decisões como nulidades processuais?
A tese ainda chama a atenção também pelo que ela deixa de lado. Décadas de debates levaram à construção de um arcabouço legal e doutrinal sobre a extensão da proteção à liberdade de imprensa quando se reproduz afirmações de terceiros. Um caso emblemático é o dos incisos II, IV e VI do artigo 27 da antiga Lei de Imprensa (5.250/67), pelo qual “não constituem abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação” a reprodução de informações provenientes de autoridades. Por mais que a Lei de Imprensa tenha sido derrubada, este princípio foi recepcionado pela doutrina e pela jurisprudência, mas ainda assim foi completamente ignorado na redação da tese, assim como outros princípios relevantes, a exemplo do neutral reportage privilege norte-americano, o que evidencia a enorme pobreza teórica que norteou não só a elaboração da tese, mas também boa parte das reações a ela.
Mas a perigosa vagueza da tese, como dissemos, é apenas uma das ameaças à liberdade de imprensa. Quem quer que não tenha fechado os olhos aos abusos cometidos ao menos desde 2019 sabe que temos o Supremo mais liberticida das últimas décadas. Alguém em sã consciência haverá de imaginar que estes ministros, nos casos que vierem a julgar no futuro, usarão a tese de forma a evitar restrições indevidas à liberdade de imprensa? É preciso lembrar que os três membros do Supremo que integravam o TSE em 2022 votaram a favor da censura prévia a um documentário da produtora Brasil Paralelo; que foi um então ministro do STF, Ricardo Lewandowski, que cunhou o termo “desordem informacional” para justificar outro ato de censura da corte eleitoral. Informações de bastidores sobre a elaboração da recente tese afirmam que sua versão original, saída da pena de Alexandre de Moraes (quem mais?), era ainda pior, tendo sido classificada por Marcelo Rech, presidente-executivo da ANJ, como “grave ameaça à liberdade de imprensa”.
A tese não é um simples lembrete de que o jornalismo inconsequente está sujeito a uma punição justa; ela deixa uma espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça de qualquer jornal que queira realizar seu necessário trabalho de denúncia
A história brasileira recente é pródiga em escândalos que só viram a luz graças a denúncias feitas à imprensa, em entrevistas – basta lembrar os casos de Pedro Collor e Roberto Jefferson, o delator do mensalão –, e que só depois foram devidamente investigadas. Mas, com a nova tese do Supremo, o mais provável é que, como alertou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), ocorra uma autocensura, com editores desistindo de publicar entrevistas, receosos de que as informações acabem não se confirmando posteriormente e que um juiz condene o veículo de imprensa usando arbitrariamente os conceitos da tese.
A responsabilidade é obrigação do jornalista, e nenhuma publicação ou veículo de imprensa tem o direito de lavar as mãos apenas por estar reproduzindo afirmações de um entrevistado. A tese, no entanto, não é um simples chamado à responsabilidade e um lembrete de que o jornalismo inconsequente está sujeito a uma punição justa; o que o Supremo fez foi deixar uma espada de Dâmocles pendendo sobre a cabeça de qualquer jornal que queira realizar seu necessário trabalho de denúncia. As entidades representativas de profissionais e veículos de imprensa esperam que a publicação do acórdão, que será redigido por Edson Fachin, solucione as lacunas e as ambiguidades da tese – mas, para que ela se torne realmente democrática, respeitadora da liberdade de imprensa e condizente com toda a boa doutrina sobre o tema, será preciso melhorá-la muito.