A quem cabe definir alíquotas de impostos no Brasil? Na terra do ativismo judicial, eis mais uma atribuição do Poder Executivo que o Supremo Tribunal Federal acaba de tomar para si – provocado, é verdade, por um partido político que não conseguiu fazer valer sua opinião nos fóruns adequados. Em liminar concedida na semana passada, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu partes de três decretos do presidente Jair Bolsonaro que reduziam o IPI de uma série de produtos – de acordo com a decisão monocrática, aqueles itens que também forem fabricados na Zona Franca de Manaus não podem ter as alíquotas reduzidas. A liminar foi um pedido do partido Solidariedade e de parlamentares do Amazonas, segundo os quais a redução do IPI violaria uma suposta proteção constitucional dada à Zona Franca.
A Constituição Federal, no entanto, é quase silente no que diz respeito ao parque industrial amazonense. A Zona Franca é mencionada apenas no artigo 40 das Disposições Constitucionais Transitórias, com as características de “área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos fiscais”, incentivos estes regulados em uma subseção do Decreto 7.212/2010, que regulamenta a cobrança do IPI. Da menção constitucional aos “incentivos fiscais”, no entanto, não se depreende que a Carta Magna obrigue os produtos fabricados ou montados no restante do país a serem sempre menos competitivos (ou até mesmo muito menos competitivos) que os oriundos da Zona Franca; o que tanto a Constituição quanto o Decreto 7.212 garantem é a perenidade do incentivo fiscal até o fim de 2073, e uma eventual revogação antes desse prazo, sim, poderia ser questionada e derrubada judicialmente.
Da menção constitucional a “incentivos fiscais” não se depreende que a Carta Magna obrigue os produtos fabricados ou montados no restante do país a serem sempre menos competitivos que os oriundos da Zona Franca de Manaus
Mas não foi o caso dos decretos de Bolsonaro, que fazem uso da competência atribuída à União no parágrafo 1.º do artigo 153 da Constituição: “É facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enumerados nos incisos I, II, IV e V” – é o inciso IV que menciona os impostos sobre “produtos industrializados”, ou seja, o IPI. Este tributo, aliás, já sofreu redução em outras ocasiões, como no governo Dilma Rousseff, que em 2012 baixou a alíquota para veículos, móveis e linha branca. Nem por isso houve judicialização, muito menos se falou da necessidade de o governo realizar “medidas compensatórias” à Zona Franca de Manaus, como afirma Moraes em sua liminar, ao dizer que a redução do imposto sem tais compensações seria uma ameaça à própria existência da Zona Franca – aliás, os decretos questionados já levam em conta as particularidades do polo industrial amazonense, já que o IPI de itens que concorrem com os da Zona Franca foi reduzido em 25%, contra 35% dos demais produtos contemplados nas medidas presidenciais; os únicos produtos a terem o imposto zerado foram insumos para refrigerantes.
Não partilhamos da opinião de algumas correntes da filosofia política que, ao defender uma neutralidade total do Estado em várias matérias, consideram os incentivos fiscais como maus em si mesmos por introduzir desigualdades. O poder público pode, sim, fazer escolhas e incentivar determinadas atividades ou induzir o desenvolvimento de certas regiões; a Zona Franca de Manaus é resultado de uma escolha desse tipo, quando o governo optou por desenvolver uma área remota do país por meio da industrialização. Mas isso não significa que esta escolha tenha de amarrar perpetuamente as mãos do poder público, por exemplo impedindo-o de reduzir impostos no restante do país. Muito menos que tal proibição se dê em nome da defesa de “dispositivos constitucionais” como “o meio ambiente ecologicamente equilibrado”, para citar a petição do Solidariedade e da bancada amazonense, até porque o intenso processo de urbanização pós-criação da Zona Franca aumentou drasticamente os níveis de poluição em Manaus. Nos anos 50 e 60 do século passado, a indústria talvez fosse o melhor ou até o único caminho para se atingir o objetivo do desenvolvimento regional, mas hoje há várias outras alternativas a explorar na região amazônica, mais ambientalmente responsáveis.
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Tanto os autores da ação quanto o ministro Alexandre de Moraes, portanto, tiram conclusões que nem a Constituição, nem a legislação infraconstitucional, nem decretos presidenciais permitem tirar a respeito de uma suposta imutabilidade das alíquotas do IPI. E, com isso, negam ao governo federal uma prerrogativa que a Carta Magna lhe confere de modo inequívoco no artigo 153. O Judiciário, assim, passa a fazer política tributária e fiscal – como, aliás, já havia feito ao bloquear liminarmente uma redução do Imposto de Importação sobre armas, tema cujo julgamento no plenário está parado após pedido de vista de Nunes Marques – e, mais uma vez, avança indevidamente sobre uma atribuição que não é sua.
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