Quando, dias atrás, descrevemos a perseguição atual à liberdade de expressão no Brasil como uma mistura de Kafka e Orwell, acabava de vir a público a mais recente ação do Supremo Tribunal Federal para confirmar a avaliação. Em portaria datada de 27 de agosto e publicada no dia 30, a corte investe ainda mais na novilíngua e institui o seu próprio “Ministério da Verdade”, chamado eufemisticamente de “Programa de Combate à Desinformação (PCD)” e que mantém todos os vícios de que tratamos em ocasiões anteriores, especialmente a confusão conceitual e formal que confunde diferentes tipos de manifestação e os considera todos passíveis de criminalização ou repressão.
Percebe-se, já nos “considerandos”, que o Supremo já define de forma muito aberta o que gostaria de combater. Cita três vezes a “desinformação”, dando a entender que a preocupação da corte está na difusão de afirmações factuais falsas a respeito da atuação do Supremo; mas também menciona o “combate ao discurso de ódio contra instituições públicas”. Ora, “discurso de ódio”, como bem se sabe, se tornou uma “versão negativa” do que o filósofo Alfonso López Quintás chamou de “palavras-talismã”, conceitos vagos em nome dos quais se pode tudo, como “liberdade” e “progresso”. Basta caracterizar algo – qualquer crítica, por mais polida ou sensata que seja – como “discurso de ódio” para que se justifique sua supressão, como bem demonstra a “cultura do cancelamento” atual, que já é suficientemente distópica quando exercida por particulares, mas que ganha contornos totalitários quando passa a envolver a mão do Estado.
STF quer usar monitoramento para combater a “desinformação” e o “discurso de ódio” – e quem definirá o que é “narrativa odiosa” será, certamente, o próprio Supremo
E quem, afinal, define o que são “narrativas odiosas à imagem e à credibilidade da Instituição, de seus membros e do Poder Judiciário”? Quem mais, a não ser os próprios ministros do Supremo Tribunal Federal? E bem sabemos quais são os critérios dos membros da corte, que ameaçam de prisão quem chama o Supremo de “uma vergonha”, ou que buscam destruir a carreira de membros do Ministério Público que criticam decisões – decisões, e não pessoas, que fique claro – bastante criticáveis da corte. A julgar pelo retrospecto, qualquer crítica legítima, seja formulada em termos brandos ou de forma mais incisiva, será classificada como “discurso de ódio” se ferir os brios dos ministros.
Para bem identificar os “ataques” ao Supremo, o PCD investirá pesadamente em monitoramento – foi este o termo óbvio que o Supremo quis evitar quando mencionou o “desenvolvimento e aquisição de recursos de tecnologia da informação para identificação mais célere de práticas de desinformação e discursos de ódio”, mas, no fundo, é disso que se trata. Em outras palavras, o dinheiro do contribuinte brasileiro será usado para que o STF rastreie mais rapidamente o que se fala dele, para que se tomem as devidas providências.
E que providências serão essas? Diz a resolução que o enfrentamento dos “efeitos negativos provocados pela desinformação e pelas narrativas odiosas” será feito “a partir de estratégias proporcionais e democráticas”. Para que isso ocorra, no entanto, a corte terá de promover uma guinada de 180 graus, porque praticamente tudo o que vem fazendo até agora em causa própria tem sido desproporcional e antidemocrático. Inquéritos abusivos e sigilosos com acúmulo de funções, censura, prisões ao arrepio da Constituição, quebras de sigilo e desmonetizações (estas últimas, promovidas não pelo STF, mas pelo TSE, que nada mais faz que seguir o exemplo da corte suprema) contra pessoas ou empresas cujas atitudes as autoridades não são capazes de descrever nos termos do Código Penal podem ser qualquer coisa, menos “proporcionais” ou “democráticas”.
Por fim, a corte quer realizar ações de “fortalecimento de imagem (...) com a finalidade de disseminar informações verdadeiras e de produzir conteúdo que gere engajamentos positivos sobre o Tribunal”. Esperando sinceramente que não esteja passando pela mente dos ministros a instituição de uma versão “suprema” dos MAVs petistas ou o recurso a influenciadores de mídias sociais para que falem bem da corte, eis a nossa modesta sugestão para que o Supremo possa gerar “engajamentos positivos”: basta proteger o Estado de Direito, defender as liberdades e garantias individuais, deixar de legislar e de se intrometer nas funções do Poder Executivo, respeitar a Constituição, manter os ladrões na cadeia em vez de investir em malabarismos jurídicos que estimulam a impunidade, e cessar a perseguição contra quem está apenas exercendo seu direito constitucional à liberdade de expressão. Este é o papel de uma corte: respeitar e fazer cumprir a lei, e não monitorar ou caçar críticos na internet em sua versão particular de 1984.