A partir de 6 de janeiro do ano que vem, os juros do cheque especial sofrerão uma forte redução graças a uma decisão governamental. O Conselho Monetário Nacional definiu, em 27 de novembro, que esta modalidade de crédito não poderá cobrar juros maiores que 8% ao mês, o que equivale a 151,8% anuais. Hoje, os juros do cheque especial podem chegar a 300% ao ano, ou 12% mensais em média. A imposição de um teto para os juros neste caso gerou uma série de críticas, incluindo a de que se trata de medida pouco liberal, e por isso contrária ao ideário defendido pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto – que, no entanto, defendeu a decisão.
O diagnóstico feito pelo governo para embasar sua decisão no fato de haver uma “falha de mercado”, como alegado em nota emitida pelo Banco Central, não deixa de ser acertado. O mercado bancário brasileiro é dominado por algumas poucas empresas – como, aliás, ocorre em diversas outras áreas, da aviação às telecomunicações –, o que atenua os efeitos benéficos de um ambiente de competição. O cheque especial, que é de longe a mais cara das modalidades de crédito no Brasil, é usado principalmente pelos clientes mais pobres e com menor educação financeira, aqueles que desconhecem outras opções oferecidas pelos bancos e que não cobram os mesmos juros do cheque especial. Campos Neto afirmou que os mais ricos gozam de um “luxo” ao terem limite de cheque especial sem necessariamente usá-lo – e a decisão do CMN inclui, também, uma tarifa que os bancos poderão cobrar de quem tem limites de cheque especial superiores a R$ 500, ainda que nunca usem esse crédito. Esta cobrança, que é uma forma de atenuar o impacto da limitação dos juros, foi citada pelo presidente do BC para afastar as críticas de que estaria havendo “tabelamento” de juros.
O cheque especial é usado majoritariamente pelos clientes mais pobres e com menor nível de informação
Esta Gazeta do Povo não adota a posição libertária que rechaça qualquer restrição à liberdade econômica, pois entende que a atividade econômica envolve situações em que existe impacto sobre a própria dignidade do indivíduo e que podem justificar uma ação estatal. É o caso, por exemplo, da miséria extrema, que justifica ações de teor redistributivo, a exemplo do Bolsa Família – uma política que não deixa de ter um cunho liberal. No caso do cheque especial, estão em jogo situações que podem levar à ruína financeira de muitas pessoas. Não estamos falando, aqui, de uma pessoa bem informada, que toma decisões conscientes que terão consequências catastróficas sobre seu patrimônio. Como já afirmamos, o cheque especial é usado majoritariamente pelos clientes mais pobres e com menor nível de informação, ou seja, que estão claramente em situação de assimetria diante dos bancos, podendo entrar em uma espiral de endividamento da qual não têm como escapar. É a dimensão dos juros praticados neste caso que pode embasar uma intervenção, como no caso do teto adotado pelo Conselho Monetário Nacional.
A pergunta que se coloca a seguir é se a imposição do teto de juros é a melhor solução, pois ela não deixa de ser uma limitação à liberdade econômica. O princípio da proporcionalidade sempre nos obriga a questionar se não existem outras ações, menos restritivas, que podem ser tomadas para se atingir o mesmo objetivo. O incentivo à educação financeira, que permitiria aos cidadãos conhecer outras modalidades de crédito mais baratas, para evitar a armadilha do cheque especial, é medida que rende frutos no médio a longo prazo. Mas, no curto prazo, os bancos estatais não poderiam, por exemplo, puxar voluntariamente para baixo os juros do cheque especial até patamares aceitáveis? É o tipo de decisão de mercado que conquistaria mais clientes, compensando na escala o que o banco deixaria de ganhar na margem. Os bancos e as entidades que os representam costumam responder citando fatores como inadimplência, peso da tributação, altos custos administrativos, depósitos compulsórios e outros itens ligados à regulação, e que inviabilizariam uma redução tão grande dos juros.
Aparentemente, o CMN não endossa essa explicação – até porque, se esses fatores efetivamente impedissem juros mais baixos que os atuais, não haveria “falha de mercado” alguma e a intervenção seria claramente abusiva. Não há como negar que há inadimplência e hiper-regulação, mas, na avaliação das autoridades, elas não seriam a causa determinante e inescapável dos juros atuais; o mais provável, nesta leitura, é que tenha ocorrido certa acomodação nos patamares atuais, satisfatórios para todos os concorrentes, mas que não deixariam de ser abusivos, justificando, assim, uma ação mais enfática, enviando a mensagem de que os juros atuais são inaceitáveis, enquanto se busca outras maneiras de viabilizar juros mais baixos sem recorrer a grandes intervenções.
A imposição de um teto de juros, mesmo com a compensação da tarifa, não é a mais perfeita das medidas; o país tem longo histórico de tentativas de reduzir custos e impor pisos ou tetos por decisão governamental e que terminaram mal. Mas, na constatação de uma “falha de mercado”, uma ação emergencial pode, eventualmente, ser justificada, desde que não sirva como um “novo normal” a partir do qual nada mais seja feito. A equipe econômica tem de dedicar sua atenção aos fatores que alimentam o spread bancário e estimular a concorrência no mercado financeiro, principalmente com a chegada das fintechs, enquanto a população adquire mais noções de educação financeira, a ponto de compreender que o cheque especial é uma opção de emergência, e não uma alternativa convencional de crédito; assim, medidas deste tipo se tornarão completamente desnecessárias.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura
Deixe sua opinião