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editorial

O Vale Cultura vale uma conversa

Desconsiderar a radiografia das práticas culturais no Brasil é transformar o novo benefício do governo numa bolsa a mais com política de menos

Depois de um ano de aprovação, o projeto Vale Cultura vai se tornar realidade, no início de 2014. Festejos, claro, mas com moderação. Trata-se de uma política ainda pouco discutida pela sociedade brasileira. E o mais preocupante: acabou sendo percebida como extensão dos demais programas sociais do governo, como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida, o que não é.

Ter a cultura como parte da ação social do governo não chegava a ser uma reivindicação explícita, mas era um desejo secreto da população, acalantado durante décadas por artistas e produtores. Até o início dos anos 2000, eram raras as pesquisas sobre práticas culturais no Brasil. Quando surgiram, disseram o que já se esperava. Além de ser negligente com o assunto, o brasileiro sofre com a falta de acesso aos bens artísticos e culturais. É já um clássico a pesquisa do Ministério da Cultura (MinC), de 2004, que mostrou, pela primeira vez, que o brasileiro, não importa a classe social, gasta entre 4% e 8% de seus rendimentos com cultura. Uma quirera. O levantamento mostrou também o que as classes populares entendem por cultura – estar junto, ouvindo música ou vendo vídeo em casa.

As pesquisas que se seguiram não disseram nada diferente. Faltam espaços, como revelaram, em duas edições, os anuários de bens culturais do MinC. Bibliotecas, cinemas e teatros são privilégio de capitais e cidades grandes. Por causa disso ou apesar disso, não se sabe, tem-se aqueles índices que nos deixam com as bochechas rosadas, a exemplo de um estudo de 2013 do Ipea: apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema; 7% frequentaram uma exposição de arte; a maioria esmagadora nunca entrou em um museu.

No Brasil, sabe-se, alimentou-se a ideia de que o avanço nas práticas culturais está atrelado à escola. Pela lógica, melhoras na educação significam mais gente no teatro. Engano. Custou-se a perceber que a escola e a cultura não são necessariamente feitas do mesmo barro. E que a educação não tem como dar conta da produção contemporânea, posto que se ocupa do conhecimento estabelecido. A escola pede Dom Casmurro, de Machado de Assis. É fundamental. A vida cultural hodierna pede a leitura de Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera. Nesse sentido, a aplicação de um projeto como o Vale Cultura vem para reverter um equívoco que criou raízes no Brasil. Se bem administrado, pode criar mecanismos para que o público – em especial o que tem menos acesso aos bens culturais – faça suas escolhas, o que é uma condição da experiência estética. Sem esse arbítrio, o ciclo da cultura não se completa.

É necessário, no entanto, que a implantação do Vale Cultura seja acompanhada com rigor. O novo vale surge num país em que a cultura permanece um satélite artificial nos planejamentos urbanos, por exemplo. Por mais que os discursos de palanque pareçam dizer o contrário, não se leva em conta na gestão pública a importância de uma biblioteca ou de um teatro, comumente tratados como a cereja do bolo, e não como motor de desenvolvimento. Em resumo, a cultura tem um lugar difícil na lógica do poder. É uma lenha convencer de que não é um apêndice da educação. O benefício do Vale Cultura pode padecer do mesmo mal, o de virar adorno, um paliativo, um álibi para a preguiça. Quem é da cultura sabe – exige trabalho de estiva, suor e alguma agressividade. Só assim para mostrar que uma feira de livros ou um festival de teatro custam menos e afetam mais a sociedade.

Em tempo – a adesão ao Vale Cultura anda tímida. Dados divulgados pelo MinC informam que até o início de dezembro apenas 0,5% da meta do governo foi atendida. Até o momento, tem-se na lista pouco mais de 210 mil funcionários de 1,1 mil empresas públicas e privadas cadastradas voluntariamente. A projeção é atingir 42 milhões de brasileiros até 2020, preferencialmente os que recebem até cinco salários mínimos. O vale de R$ 50 tem descontos proporcionais em folha de pagamento e serve para pagar ingressos de cinema e teatro, adquirir CDs, DVDs e impressos, e até para comprar equipamentos artísticos. É uma ideia, se vier acrescido de uma roda de conversa sobre cultura. São demoradas, é fato, mas eternas.

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