Poucos temas parecem estar mobilizando tanto a sociedade brasileira e a classe política quanto o voto impresso auditável, tema de uma proposta de emenda à Constituição que tramita na Câmara. O assunto leva apoiadores de Jair Bolsonaro às ruas, e colocou em rota direta de colisão os presidentes da República e do Tribunal Superior Eleitoral, em prévia de uma das mais graves crises institucionais da história recente, com direito a insultos, insinuações de não realização das eleições e, mais recentemente, ameaças de ações fora das “quatro linhas” da Constituição. Este conflito aberto entre poderes não pode ser tratado com ligeireza: ele é gravíssimo, mas tem solução, e ela está no Congresso Nacional.
Na quinta-feira, o relatório de Filipe Barros (PSL-PR), pela aprovação da PEC do Voto Impresso, foi derrubado por 23 votos a 11 na comissão especial, um placar mais elástico que o inicialmente previsto. O resultado levou à redação de um novo parecer, desta vez pela rejeição da PEC, redigido por Raul Henry (MDB-PE) e aprovado por 22 a 11. A derrota na comissão era considerada certa mesmo por deputados aliados do presidente Bolsonaro e favoráveis ao texto que previa a implantação da impressão do voto, sem contato entre eleitor e cédula. No entanto, a PEC ganhou uma sobrevida quando o presidente da casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que submeteria o tema à avaliação dos 513 deputados.
Governo, Supremo, TSE e toda a sociedade precisam estar prontos para reconhecer e aceitar qualquer resultado que vier do Congresso
A Constituição Federal é relativamente lacônica sobre o voto. Afirma, no artigo 14, que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos”, e mais adiante define a periodicidade das eleições e a forma como serão eleitos os ocupantes do Executivo e Legislativo. O único ponto em que os parlamentares não podem tocar de forma alguma é o “o voto direto, secreto, universal e periódico”, que não pode ser abolido nem mesmo por emenda constitucional, como diz o artigo 60. Todo o resto, o que está na Constituição e o que está na lei infraconstitucional, pode ser alterado. E quem decide como quer votar – se com urna puramente eletrônica, se com voto impresso; se pelo sistema majoritário, proporcional, distrital puro, distrital misto, “distritão” ou qualquer outro; e assim sucessivamente – é o povo, por meio dos representantes escolhidos para legislar. É tarefa que cabe única e exclusivamente ao Legislativo, não ao Executivo, nem ao Judiciário.
E, neste caso específico, o recurso ao plenário (que, embora muito incomum, é permitido pelo regimento da Câmara) é a melhor decisão. Não se trata de desmerecer a comissão especial e seu trabalho, mas de reconhecer que se está diante de uma circunstância extraordinária em que a avaliação de todos os representantes eleitos pelos brasileiros é a melhor saída para que haja um “pronunciamento definitivo” sobre o tema.
A palavra que importa, aqui, é “definitivo”. Isso significa que os outros atores políticos presentes nas duas pontas da Praça dos Três Poderes – sim, porque infelizmente os ministros do Supremo acabaram se portando também como atores políticos neste caso, deixando de lado a necessária imparcialidade dos magistrados – e toda a sociedade, independentemente de que lado assuma no debate, precisam estar prontos para reconhecer e aceitar qualquer resultado que vier do Congresso. Se a PEC passar pela Câmara e pelo Senado, os ministros do Supremo que vêm repetidamente se pronunciando contra o voto impresso têm de aceitar o resultado sem interferir, pois não está em jogo aqui o caráter “direto, secreto, universal e periódico” do voto, e aqueles que integram o TSE terão de trabalhar para implantar as determinações da PEC. E, caso a Câmara ou o Senado rejeitarem a PEC, mantendo o sistema atual, totalmente eletrônico, é dever do presidente Jair Bolsonaro acatar a voz do Congresso e encerrar definitivamente a escalada de insinuações e ataques que vêm marcando sua pressão pela adoção do voto impresso. Por fim, todos os demais brasileiros, favoráveis ou contrários à PEC, podem muito bem procurar seus representantes para manifestar sua opinião, podem se queixar caso o resultado não lhes agrade, mas não cabe a ninguém usar quaisquer meios de que dispuserem (muito menos o recurso à força) para negar, boicotar ou sabotar o que tiver sido decidido pelos parlamentares.
A aceitação da voz do Congresso na sua qualidade de legislador, independentemente do que diga essa voz, é essencial para a democracia e, no contexto atual, é a única maneira de trazer alguma pacificação – porque ainda continuará havendo muitos outros temas a causar polarização e tensões institucionais, infelizmente – neste momento em que falta muito pouco para que se perca o controle e as “quatro linhas” da Constituição sejam abandonadas. Que a totalidade do parlamento possa, então, dar uma solução a essa controvérsia e o país seja capaz de seguir adiante, já que o Brasil ainda enfrenta a pandemia de Covid-19 e tem de lidar com mazelas socioeconômicas gravíssimas, como níveis preocupantes de inflação e desemprego.