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Editorial

A OAB e a crise das liberdades democráticas

Beto Simonetti é o novo presidente da OAB
Beto Simonetti será presidente do Conselho Federal da OAB até o início de 2025. (Foto: Divulgação/OAB)

O grupo político de Felipe Santa Cruz continuará dando as cartas na Ordem dos Advogados do Brasil, com a eleição de José Alberto Simonetti para a presidência do Conselho Federal da OAB. A eleição é indireta – votam apenas 81 conselheiros – e Beto Simonetti, como é conhecido, teve o apoio de 26 das 27 seccionais estaduais da entidade. Sai de cena a desavença pessoal entre Santa Cruz – cujo pai desapareceu durante a ditadura militar – e o presidente Jair Bolsonaro, mas algumas posturas políticas bastante deletérias permanecem, a julgar pelas declarações do novo presidente em entrevista à revista Veja.

Simonetti, por exemplo, aderiu às narrativas enviesadas sobre a Operação Lava Jato, chegando a dizer que “graças a Deus a Lava Jato foi desmobilizada” e afirmando que ela contribuiu para a quebra de empresas e o consequente aumento do desemprego, culpando o combate à corrupção por algo que foi causado não pela Lava Jato, mas pelo próprio esquema ao qual grandes empreiteiras aderiram para conquistar contratos e ajudar a pilhar empresas estatais. A Lava Jato nada mais fez que colocar às claras a roubalheira e aplicar a lei – que, no caso brasileiro, também responsabiliza as pessoas jurídicas pelos atos de sua cúpula. Pode-se até discutir se as regras implantadas pela Lei Anticorrupção (sancionada, aliás, por Dilma Rousseff) são as mais adequadas ou não, mas é inegável que o erro e a culpa pelas consequências dos crimes descobertos são dos corruptos e dos corruptores, não dos agentes públicos que combatem a ladroagem de colarinho branco. O novo presidente da OAB nacional também foi bastante esquivo ao falar das absurdas decisões do STF que livraram o ex-presidente Lula. “Se o Supremo identificou que ali havia nulidades, acertou se anulou provas inválidas”, disse, ignorando que o STF não “anulou provas”, e sim tirou da cartola uma suspeição sem o menor fundamento jurídico e reverteu todo o seu entendimento anterior sobre a competência para julgar Lula, permitindo que o petista saísse impune.

Beto Simonetti deixa uma primeira impressão muito ruim ao defender o sacrifício de garantias democráticas como a liberdade de expressão e endossar o abuso e o arbítrio apenas porque dirigidos àqueles de quem se discorda

Talvez mais preocupantes ainda sejam suas declarações em defesa do inquérito das fake news, que está prestes a completar três anos de puro abuso nas mãos do relator Alexandre de Moraes. É verdade que fake news são “repugnantes” e “um câncer da democracia”, mas, ao afirmar que “o Supremo tem obrigação de manter o equilíbrio da democracia e tem como princípio de sua fundação o controle da manutenção do Estado Democrático de Direito”, Simonetti deixa subentendido que tudo isso está sendo cumprido por meio do inquérito das fake news. Ora, no Estado de Direito um mesmo ente não acumula as funções de vítima, investigador e juiz; no Estado de Direito respeita-se o princípio do juiz natural e inquéritos são abertos para apurar fatos concretos, e não agrupamentos genéricos de situações; no Estado de Direito não existe censura contra publicações de imprensa, nem crimes de opinião, nem se viola a imunidade parlamentar. Mas o inquérito das fake news fez tudo isso e mais ainda, ao longo destes três anos. Defendê-lo é defender tudo o que jamais seria aceito em um Estado de Direito.

Como se não bastasse, Simonetti ainda endossou – mesmo que de forma não totalmente explícita, mas nas entrelinhas – a possibilidade de censura do aplicativo Telegram caso ele não se curve às exigências do TSE e suas equivocadas definições de fake news. “Em princípio, falando não só do Telegram ou de qualquer outro aplicativo, deve assumir a culpa quem propaga as fake news”, disse o novo presidente da OAB nacional, borrando completamente as distinções entre as pessoas concretas que espalham mentiras e os meios tecnológicos usados para tal, e deixando a porta aberta para sanções completamente desproporcionais que colocariam o Brasil na companhia de regimes ditatoriais, como já lembramos neste espaço.

A OAB construiu sua história e ganhou o respeito e admiração dos brasileiros graças a décadas de atuação sólida no cenário nacional em defesa não deste ou daquele ator político, mas das liberdades democráticas e da lisura no trato da coisa pública, independentemente do governo de turno. Mas, recentemente, a OAB deixou em segundo plano esta atuação “política” no melhor sentido da palavra para se dedicar à política mais rasteira, a das picuinhas, queimando a credibilidade conquistada com o suor de tantos grandes juristas. O novo presidente do Conselho Federal deixa uma primeira impressão muito ruim ao defender o sacrifício de garantias democráticas como a liberdade de expressão e endossar o abuso e o arbítrio apenas porque dirigidos àqueles de quem se discorda. No momento pelo qual passa o país, é urgente que uma entidade com força moral assuma o protagonismo e seja defensora firme das liberdades democráticas para todos os brasileiros, sem exceção. A OAB pode assumir esse papel, mas para isso precisará recuperar aquele espírito que a animou em momentos-chave da história nacional.

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