Imaginemos uma situação na qual deputados e senadores aprovam uma determinada lei, cuja constitucionalidade é questionada no Supremo Tribunal Federal. O plenário do STF atesta que a lei agride a Constituição. Como consequência, todos os deputados e senadores que votaram favoravelmente ao projeto são processados e correm o risco de serem presos. Não parece absurdo? Pois substitua-se “deputado” e “senador” por “juiz” e “procurador”, e substitua-se “declaração de inconstitucionalidade” por “reversão da decisão judicial em instância superior”, e tem-se uma das absurdas possibilidades abertas pelo projeto de lei de abuso de autoridade que tramita no Senado como PLS 280/2016.
Isso porque, ainda que o parágrafo único do artigo 1.º do substitutivo elaborado pelo senador Roberto Requião afirme que “não constitui crime de abuso de autoridade o ato amparado em interpretação, precedente ou jurisprudência divergentes, bem assim o praticado de acordo com avaliação aceitável e razoável de fatos e circunstâncias determinantes”, o texto continua com um “desde que, em qualquer caso, não contrarie a literalidade desta lei”. Em outras palavras, questões de interpretação estariam salvaguardadas – só que não.
O projeto de abuso de autoridade apaga a fronteira entre dolo, culpa e mera interpretação
O grande problema do projeto é que ele apaga completamente a fronteira entre o dolo – a intenção deliberada de humilhar, constranger ou tolher arbitrariamente a liberdade de um investigado ou réu; a culpa, que consistiria no erro ou na omissão não intencional; e a mera interpretação. Assim, várias medidas como prisões preventivas, conduções coercitivas, buscas e apreensões, ou situações como a exposição de um preso, acabariam classificadas como abuso de autoridade por parte de quem as solicita, ordena ou executa.
O projeto pode até não ser tão surreal quanto a emenda acrescentada pelos deputados às Dez Medidas Contra a Corrupção – ali, um juiz ou membro do MP poderia acabar na cadeia por “ser patentemente desidioso” (ou seja, preguiçoso) ou por “proceder de modo incompatível com a dignidade e o decoro do cargo”, seja lá o que isso signifique –, mas teria o efeito de paralisar a ação de magistrados, policiais e membros do MP, pois mesmo uma questão de interpretação teria o poder de culminar em um processo e prisão. Restariam aos agentes públicos duas opções: viver em tribunais, defendendo-se daqueles a quem acusa ou julga, ou a inatividade, pois quem não faz também não erra.
Os defensores desses projetos alegam que juízes e procuradores querem se esquivar da responsabilização por seus atos. Ora, esses agentes públicos, quando cometem crimes, já estão sujeitos a todas as punições que pesam sobre os demais cidadãos – se casos como o de Nicolau dos Santos Neto e João Carlos da Rocha Matos são exceções, isso se deve não à lei, mas à forma como é aplicada. São esses projetos que criariam uma diferença, pois colocariam juízes e procuradores na cadeia por atos que, na iniciativa privada e em outros ramos do serviço público, renderiam no máximo uma demissão.
Prova de que juízes e membros do MP não estão querendo fugir do debate é o projeto alternativo do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e que incorpora sugestões desses profissionais. Ele criminaliza, por exemplo, a “carteirada” que tanto revolta o cidadão comum e que não foi mencionada no PLS 280. Mas seu maior mérito é ressaltar, sempre que possível, o componente doloso do abuso de autoridade, protegendo aquelas ações que são resultantes da interpretação – ainda que equivocada – do agente público que busca o bom andamento do processo. Uma outra luta do MP, desta vez no âmbito administrativo e não penal, é pelo fim da revoltante “aposentadoria compulsória” recebida por quem comete graves erros, “condenado” a ficar definitivamente em casa recebendo salário.
O PLS 280 seria apreciado em regime de urgência, mas o Senado já se articula para devolvê-lo à velocidade normal de tramitação. Se isso realmente ocorrer, que sirva para os senadores perceberem os absurdos contidos nele e na versão retalhada das Dez Medidas enviada pela Câmara. Coibir o abuso de autoridade é uma coisa; atar as mãos dos agentes públicos responsáveis pelo combate à corrupção é outra, bem diferente.
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