Quando um senador da República compara a Hitler e Mussolini e chama de “idiota” quem discorda de um texto legislativo, pode-se dizer que não há argumentos razoáveis a expor. Mas foi assim que Roberto Requião (PMDB-PR) defendeu sua nova versão do projeto de lei sobre abuso de autoridade, apresentada no dia 19. A “nova” versão, a bem dizer, nem traz melhorias substanciais – e Requião ainda se meteu em saia justa ao invocar o apoio do juiz Sergio Moro às alterações feitas, no que foi prontamente desmentido pelo magistrado.
O antigo PLS 280/2016, de autoria do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), deu lugar ao PLS 85/2017, que tem como autor o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). Mas uma comparação entre os dois substitutivos apresentados por Requião (em março e agora) mostra que pouca coisa mudou. É verdade que a redação absurda do artigo 1.º, que criminalizava a mera interpretação da lei por parte do agente público, foi substancialmente alterada. Agora, o texto afirma que “a divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas, necessariamente razoável e fundamentada, não configura, por si só, abuso de autoridade”. Moro afirmou, no entanto, que a expressão “necessariamente razoável e fundamentada” introduz um elemento de subjetividade que segue deixando portas abertas para a arbitrariedade – é significativo que Requião tenha mantido, no novo relatório, os gracejos que já tinha feito anteriormente contra a clareza nos termos da lei.
Não surpreende que investigados pela Lava Jato tenham elogiado o substitutivo e até solicitado que ele fosse votado imediatamente
O novo projeto, ao contrário do anterior, deixa clara a necessidade do dolo, da “finalidade específica de prejudicar outrem, beneficiar a si próprio ou a terceiro ou ainda por mero capricho ou satisfação pessoal” para se configurar o crime de abuso de autoridade. De resto, boa parte da descrição dos tais “crimes de abuso de autoridade” que preocupava no PLS 280/2016 permanece no PLS 85/2017, misturando atitudes que indubitavelmente constituem abuso de autoridade com outras práticas vagamente descritas, incluindo a condução coercitiva “manifestamente descabida”. Requião simplesmente transplantou para o projeto de Rodrigues o texto que estava no projeto de Calheiros, com alterações mínimas e ignorando sugestões pertinentes do senador da Rede, como o crime de “carteirada”, definido em sua versão original como “Utilizar-se de cargo ou função pública ou invocar a condição de agente público para se eximir de cumprir obrigação legal a todos imposta ou para obter vantagem ou privilégio indevido”.
Mas Requião foi além. O artigo 3.º do substitutivo de março afirmava apenas que “Os crimes previstos nesta lei são de ação penal pública incondicionada”, ou seja, caberia ao Ministério Público propor a ação por abuso de autoridade. Na nova versão, o senador acrescentou as palavras “admitindo-se a legitimidade concorrente do ofendido para a promoção da ação penal privada”. Em outras palavras: réus e investigados poderiam processar juízes, promotores ou procuradores. A reação a esse dispositivo foi imediata, pois ele dá margem a um truque jurídico: advogados e réus poderiam processar um magistrado com o único objetivo de, posteriormente, conseguir arguir sua suspeição em novos casos com base na disputa existente – uma manobra para contornar o princípio do juiz natural. A senadora Ana Amélia (PP-RS) deu nome aos bois: “Com isso, o Eduardo Cunha vai poder pedir para sair da esfera do juiz Sergio Moro”, exemplificou.
Com essa novidade, não surpreende que investigados pela Lava Jato tenham elogiado o substitutivo e até solicitado que ele fosse votado imediatamente. Felizmente, a tentativa não prosperou e a votação ficou para a próxima quarta-feira. Melhor, no entanto, seria enterrar de vez essa proposta que, sob o pretexto de coibir abusos, compromete seriamente o combate à corrupção.
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