Em uma votação apertada, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por seis votos a cinco, que os efeitos da Lei da Ficha Limpa – que considera inelegíveis os que tiverem contra si condenação judicial por determinados crimes, proferida por colegiado, nos últimos oito anos – se aplicam também a condenações que tenham ocorrido antes da entrada em vigor da lei, sancionada em 4 de junho de 2010.
O caso analisado pelo STF foi o de um vereador de um município baiano, cassado e condenado por compra de votos na eleição de 2004. Na época, a inelegibilidade durava três anos, de acordo com a Lei Complementar 64/1990, e por isso ele pôde se candidatar novamente em 2008, sendo eleito. Em 2012, já com a Lei da Ficha Limpa em vigor, ele pleiteava a reeleição como vereador, mas a Justiça Eleitoral barrou sua candidatura, pois ainda não haviam decorrido oito anos (o novo prazo estabelecido pela Ficha Limpa) desde a condenação.
À primeira vista, a decisão do Supremo parece contrariar um princípio básico consagrado na Constituição: o de que leis não podem retroagir para prejudicar um réu, apenas para beneficiá-lo. Por esse raciocínio, a inelegibilidade seria exclusivamente uma punição – e, para o político, realmente soa como tal – e o vereador, tendo cumprido sua pena de três anos, não poderia estar sujeito a uma nova punição, agora de oito anos, pela mesmíssima irregularidade. Esse foi o entendimento de cinco dos ministros. Celso de Mello, por exemplo, afirmou que “a prospectividade da lei não pode gear lesão ao ato jurídico perfeito, ao direito adquirido e à coisa julgada” – e a Justiça Eleitoral, segundo ele, estaria desrespeitando justamente o princípio da “coisa julgada” ao negar a candidatura em 2012.
Alterar critérios de elegibilidade é uma prerrogativa do legislador
No entanto, o que a Lei da Ficha Limpa estabelece, e a Lei Complementar 64 já estabelecia antes dela, é, antes de mais nada, a lista de critérios que permitem a um cidadão brasileiro se candidatar a um cargo eletivo. O relator da ação, ministro Ricardo Lewandowski, apesar de ter votado contra a aplicação da Ficha Limpa a condenações anteriores a junho de 2010, reconheceu que inelegibilidade não é punição. Não chegaríamos a tanto, pois há, sim, uma punição envolvida, mas esse caráter da Lei da Ficha Limpa é secundário; o principal é o desejo da sociedade brasileira, manifestado na legislação, de não ver entre seus representantes eleitos pessoas que tenham sido condenadas pela Justiça dentro de determinado prazo. A presidente do STF, Cármen Lúcia, que desempatou a votação, lembrou que esse já tem sido o entendimento da Justiça Eleitoral não apenas no caso do vereador baiano, mas em outras situações.
E, se a natureza da Lei da Ficha Limpa é primordialmente o estabelecimento de critérios de elegibilidade ou inelegibilidade, seus efeitos se aplicam ex nunc, ou seja, imediatamente a partir de sua entrada em vigor. Assim argumentou o ministro Edson Fachin, para quem “preencher condições para se admitir candidatura não é sanção. Quem se candidata a um cargo, a um emprego, precisa preencher o conjunto dos requisitos”. Dias Toffoli alegou que “o momento de aferição da inelegibilidade é no registro da candidatura”, e por isso a questão da “coisa julgada” não estaria prejudicada no caso de uma candidatura negada com base na Ficha Limpa.
Portanto, ainda que alguns dos ministros tenham invocado questões de moralidade para complementar seus votos – e não há dúvidas de que o entendimento do Supremo representa uma visão mais conforme aos anseios de moralização da política –, a questão central nem é essa, mas a compreensão correta da natureza da Lei da Ficha Limpa. Alterar critérios de elegibilidade é uma prerrogativa do legislador, e tais mudanças, quando ocorrem, não prejudicam supostos “direitos adquiridos” – seria inadequado, por exemplo, falar de um “direito adquirido” a se candidatar após o ex-vereador baiano ter cumprido os três anos de inelegibilidade entre 2004 e 2007.
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Para melhor compreender esse raciocínio, podemos estabelecer um paralelo com exigências de idade mínima, presentes nos critérios de elegibilidade para todos os cargos disputados em eleição. Hoje, um candidato a prefeito precisa ter no mínimo 21 anos. Supondo que a Constituição fosse alterada nos próximos meses, mudando esse limite para 25 anos, nem por isso um jovem que hoje tem 20 anos e gostaria de se candidatar em 2020, quando tivesse 23 anos, poderia ir à Justiça alegando violação de direito adquirido, nem mesmo de uma expectativa de direito.
Nem arbitrariedade, nem insegurança jurídica: o que a votação de quarta-feira do Supremo fez foi esclarecer a real natureza e alcance da Lei da Ficha Limpa, algo que interessa a todos os cidadãos – os que têm pretensões políticas e os que serão governados pelos primeiros.