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| Foto: Federico Parra/AFP

A Venezuela, na prática, não tem mais Poder Legislativo. O Tribunal Supremo de Justiça, em uma decisão proferida na quinta-feira, tomou para si as atribuições da Assembleia Nacional do país, além de conceder novos poderes ao ditador Nicolás Maduro. Agora, ele pode tomar “as medidas cíveis, econômicas, militares, penais, administrativas, políticas, jurídicas e sociais que considere pertinentes e necessárias para evitar um estado de comoção”. A alegação da Sala Constitucional do TSJ foi o fato de a Assembleia estar em “situação de desacato” por ter dado posse a três deputados que o Judiciário tinha impugnado a pedido do partido de Maduro.

O autogolpe venezuelano é uma cartada drástica na disputa entre a ditadura bolivariana de Maduro e a oposição, liderada pela Mesa de Unidade Democrática. Nas eleições parlamentares de dezembro de 2015, a oposição derrotou o chavismo e conseguiu maioria parlamentar. Os três deputados em questão fazem muita diferença porque, com eles, os opositores ao governo teriam uma maioria qualificada que lhes permitiria reformar a Constituição, promover referendos e emitir censuras, tudo isso segundo a legislação redigida pelo próprio Hugo Chávez. Sem os três deputados, a oposição mantém a maioria, mas sem poderes especiais.

A construção da ditadura chavista ocorreu sob os aplausos da esquerda brasileira

A impugnação dos deputados por um Judiciário totalmente subserviente ao chavismo (ou seja, nada independente, violando o princípio democrático da separação de poderes) foi apenas uma das manobras com as quais Maduro tentou contornar a derrota sofrida nas urnas. Ainda no fim de 2015, os chavistas unilateralmente ampliaram em dois dias a legislatura que se encerrava, para que o Legislativo substituísse vários membros do TSJ, reforçando a influência de Maduro no Judiciário. Além disso, o ditador chegou a inventar um “Parlamento Comunal Nacional”, paralelo à Assembleia Nacional.

A mais recente queda de braço envolvia a convocação de um referendo revogatório do mandato de Maduro, também previsto na Constituição e para o qual a oposição havia conseguido as assinaturas exigidas. O Conselho Nacional Eleitoral, que também é controlado por Maduro, invalidou as assinaturas alegando fraudes – e evitar o referendo era a única possibilidade de que o ditador não perdesse o poder, pois, diante do caos econômico e social que a Venezuela vive, ele sofreria uma derrota igual ou maior que a das eleições parlamentares de 2015.

Por isso, que ninguém se engane: a Venezuela não se tornou uma ditadura com o golpe de quinta-feira. Ela já o era havia muito tempo. A democracia tinha naufragado no país desde as primeiras Leis Habilitantes, quando Hugo Chávez ainda vivia. O que veio depois foi apenas o reforço do autoritarismo que já vigorava: as prisões políticas de opositores, o uso de milícias armadas contra a população civil, os sucessivos “estados de exceção e emergência econômica”, os confiscos e as violações do direito à propriedade, a perseguição à imprensa que não se curvou ao bolivarianismo, o desprezo pela vontade popular manifestada pelo voto para a Assembleia Nacional e pelas assinaturas coletadas para o referendo revogatório.

E tudo isso ocorreu sob aplausos da esquerda brasileira. Quando no poder, ela patrocinou a vergonhosa manobra que rebaixou o Mercosul a um clubinho bolivariano, suspendendo o Paraguai para que a entrada da Venezuela pudesse ser aprovada (decisão que pode ser revertida neste sábado, quando os quatro fundadores do bloco analisam a proposta de expulsão da Venezuela). A esquerda apoiou a erosão da democracia venezuelana e as medidas autoritárias chavistas que levaram o país à situação atual. Como esquecer a afirmação de Lula, para quem a Venezuela tinha “democracia em excesso”? Agora, essa esquerda silencia sobre o autogolpe venezuelano (ou, no máximo, o iguala ao impeachment de Dilma Rousseff, ainda considerado “golpe”), como que tentando lavar as mãos de sua parcela de culpa pela depredação institucional que só faz aumentar o sofrimento do povo vizinho.

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