Na primeira manifestação de Fernando Henrique Cardoso logo após o escândalo da JBS, o ex-presidente recorreu ao “sociologuês” (como ele mesmo definiu) para interpretar a crise. Disse que o país vive uma situação de “anomia” – ausência de regras, anarquia, desorganização. Não é outra a sensação quando se vê repetidamente que a desordem não é exceção, mas regra. Direitos deixam de ser propostos ou debatidos nos fóruns e nas formas adequadas, enquanto se busca conquistá-los na marra e com violência.
Na segunda-feira, servidores públicos municipais invadiram a Câmara Municipal de Curitiba e causaram danos ao patrimônio. Protestavam contra a aprovação do pacote de medidas que o prefeito Rafael Greca denomina de “Plano de Recuperação de Curitiba” – um conjunto de projetos que, de fato, afeta o funcionalismo, com impacto em reajustes e na Previdência dos servidores, além de parcelar ou reduzir dívidas que a prefeitura contraiu com pequenos (e geralmente indefesos) credores.
Cada vez menos gente está convicta de que não se impõe à força as próprias ideias, por mais nobres que sejam
Pode-se questionar o pacote em razão do que se entende como injusto ou ilegal, como supressor de expectativas ou de direitos adquiridos. Pode-se questionar a maneira como tais projetos foram apresentados e alegar que faltou discussão prévia com o funcionalismo ou com setores da sociedade interessados. O que não se pode, de maneira alguma, é tentar impor seu ponto de vista por meio da interrupção de sessões e da quebradeira intentada pelos insatisfeitos no interior da Câmara Municipal.
Ainda mais grave é o caos armado em Brasília por centrais sindicais que protestavam contra o presidente Michel Temer e as reformas da Previdência e trabalhista nesta quarta-feira. Diversos ministérios foram invadidos, saqueados e depredados, com incêndio nos prédios da Fazenda e da Agricultura, forçando a convocação do Exército para restaurar a ordem na Esplanada dos Ministérios. Dentro da Câmara, outro tipo de vandalismo: deputados de oposição tomaram a Mesa Diretora e impediram a continuação da sessão na casa legislativa.
Este comportamento não é novo. A história recente registra casos ainda mais graves, como a batalha do Centro Cívico, em 29 de abril de 2015, quando servidores tentavam invadir a Assembleia Legislativa (repetindo, aliás, o que já haviam feito meses antes) para impedir a aprovação de outro pacote, desta feita estadual, o que despertou uma reação igualmente reprovável das forças de segurança. A Câmara dos Deputados já foi invadida por policiais contrários à reforma da Previdência e por defensores de um golpe militar. Servidores também já tentaram invadir o Legislativo do estado do Rio de Janeiro, quando se votava pacote de ajuste fiscal para resolver o caos no estado, e provocaram novo confronto nesta quarta-feira. Isso sem falar nas invasões de escolas e universidades que tomaram o Paraná no fim do ano passado.
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A repetição tão frequente de casos como os relatados dá razão à definição de anomia lembrada pelo ex-presidente. Cada vez menos gente está convicta de que as instituições republicanas, ainda que lentas e imperfeitas, são a porta para a resolução das diferenças. De que não se impõe à força as próprias ideias, por mais nobres que sejam. De que depredações e invasões, definitivamente, não são um caminho aceitável.
Em um círculo vicioso, o naufrágio da cultura democrática alimenta e é alimentado pela impunidade não apenas de operadores de caixa 2, mensalões e petrolões, mas também dos autoritários que promovem a pancadaria selvagem, dos que agridem o funcionamento das instituições, dos que promovem e justificam a agressão aos direitos dos demais.
Quando a consciência democrática recua, os grupos que desejam se impor pelo fascismo e pelo terror ganham espaço. Há de se reverter este quadro o quanto antes.