A diplomacia brasileira perdeu uma chance importante de buscar aquele protagonismo global de que já tratamos em outras ocasiões ao pedir aos representantes do Brasil na Organização das Nações Unidas que comunicassem a saída do Pacto Global para Migração Segura, Ordenada e Regular. A decisão não chega a surpreender, pois o atual chanceler, Ernesto Araújo, já havia feito sinalizações neste sentido ainda antes de tomar posse, mas certamente decepciona, até porque se baseia em premissas que não condizem com o real espírito do texto.
A justificativa dada pelo Brasil para deixar o acordo, mais conhecido simplesmente como “Pacto Global para Migração” ou “Pacto de Marrakesh”, em referência à cidade marroquina onde foi assinado, em dezembro do ano passado, foi o suposto ataque à soberania nacional, que ficaria enfraquecida diante das determinações do texto. O Pacto Global para a Migração, no entanto, não tem nenhum caráter impositivo – cada país dá a ele o status legal que desejar – e defende explicitamente o direito de cada nação a definir suas políticas migratórias.
Engana-se quem pensa que os signatários definiram uma política de “fronteiras abertas”, estabelecendo um “direito à migração” generalizado que prevaleceria sobre as leis nacionais. Logo em suas primeiras páginas, o texto aprovado no Marrocos afirma que “Este Pacto Global reafirma o direito soberano dos Estados de definir sua política migratória, e a prerrogativa de administrar a migração dentro de sua jurisdição, em conformidade com o Direito Internacional. Dentro de sua jurisdição soberana, os Estados podem estabelecer diferenciações entre o status de migração regular e irregular, inclusive durante a determinação de medidas legislativas ou políticas para a implementação do Pacto Global, levando em consideração as diferentes realidades nacionais, políticas, prioridades e requisitos para entrada, residência e trabalho, de acordo com a lei internacional”. Difícil haver formulação que seja mais respeitosa em relação à soberania de cada nação.
O Pacto Global para a Migração defende explicitamente o direito de cada nação a definir suas políticas migratórias
Em resumo, as medidas definidas pelo Pacto Global para a Migração buscam garantir que o fenômeno migratório ocorra, como o nome oficial do acordo diz, de forma “segura, ordenada e regular” – esta última palavra deixa implícito o combate à imigração ilegal, não apenas porque ela viola a soberania dos Estados, mas também porque é fonte de crimes ligados ao fenômeno migratório em si, como as extorsões e a violência promovidas por agenciadores (em alguns países, chamados de “coiotes”) ou até mesmo o tráfico de pessoas. Isso não significa, no entanto, que os Estados possam desrespeitar os direitos humanos dos migrantes ilegais que venham a ser capturados. O Pacto Global tenta garantir tais direitos, recomendando, por exemplo, que a detenção seja usada como último recurso e que não dure mais que o tempo necessário para a deportação, e que o imigrante tenha acesso a toda a informação sobre sua situação.
Quanto ao migrante que entra legalmente em um país, o acordo pede que ele possa conhecer as regras locais sobre trabalho e residência, que informações prestar às autoridades, e que seja informado da necessidade de respeitar a lei local. O Pacto Global solicita, ainda, clareza nas legislações locais para evitar que um imigrante legal acabe caindo na ilegalidade sem perceber (por exemplo, ao deixar de cumprir alguma formalidade); incentiva atividades que permitam a integração do imigrante e sua família à sociedade local, combatendo a mentalidade de gueto; e pede aos países que facilitem o acesso dessas pessoas aos serviços básicos, trabalhando para eliminar, na medida do possível, as barreiras de comunicação. Percebe-se facilmente como tais medidas seriam úteis aos brasileiros que vivem no exterior – um grupo, aliás, bem mais numeroso que o de estrangeiros vivendo no Brasil.
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O documento coloca muita ênfase na cooperação internacional, pois o fenômeno migratório é uma questão global – no mínimo, sempre envolve pelo menos duas nações, a que fornece e a que recebe imigrantes, mas a realidade recente mostra que muitos fluxos migratórios têm impacto sobre continentes inteiros. O Pacto Global incentiva o compartilhamento de dados entre países para identificar as principais rotas migratórias (inclusive de imigração ilegal), parcerias no gerenciamento de fronteiras e, principalmente, ajuda internacional para eliminar as condições que às vezes forçam pessoas a deixar seus lares. Ao deixar o Pacto Global, o Brasil voluntariamente abre mão de ser um ator relevante nesta cooperação.
É verdade que o Brasil, ao não aderir ao Pacto de Marrakesh, não está apenas em companhia de países onde a xenofobia anda em alta, como Estados Unidos, Hungria e Polônia. Outras nações com forte histórico de abertura à imigração, como a Austrália, também não assinaram o documento. Ainda na condição de futuro chanceler, Araújo havia dito, em dezembro, que o Brasil elaboraria “um marco regulatório compatível com a realidade nacional e com o bem-estar de brasileiros e estrangeiros”. Se é assim, então, que este nosso país, construído pelo trabalho duro de brasileiros e imigrantes de todos os cantos do mundo, conhecido por sua hospitalidade e harmonia na relação entre quem chega e quem já está aqui, mantenha essa tradição. Que sejamos receptivos com quem vem para ajudar a fazer o Brasil crescer, e também com quem vive situações de calamidade e vê neste país uma tábua de salvação. Que sejamos firmes com quem aqui entra ilegalmente, sem agredir os direitos básicos dessas pessoas. Uma boa política migratória pode recuperar a reputação que o Brasil perde ao deixar o Pacto Global para a Migração.