Na terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto alterando algumas regras a respeito da posse de armas, depois de idas e vindas a respeito da data de assinatura e até mesmo do vazamento de trechos do decreto na semana passada, e que haviam irritado os defensores do direito ao uso de armas. O texto era aguardado com ansiedade pela parte do eleitorado de Jair Bolsonaro que votou no candidato do PSL devido ao seu posicionamento sobre o tema.
Com o decreto, Bolsonaro começa a cumprir as suas promessas de campanha neste campo. “Começa” porque um decreto presidencial, pela própria natureza do texto, não tem como promover alterações profundas, regulamentando aquilo que está previsto em lei. Outras medidas, como a prometida revogação do Estatuto do Desarmamento, só podem ocorrer por meio do Congresso Nacional, e não pela vontade do presidente da República.
Tanto defensores do desarmamento quanto da liberação das armas têm dados para usar a favor de sua posição – há todo tipo de combinação possível entre países violentos ou pacíficos, com leis restritivas ou liberais. No entanto, a mera correlação entre índices de violência e de porte de armas ignora outros fatores, como a efetividade da polícia e a legislação penal de cada país, que também servem para dissuadir ou estimular o criminoso. Portanto, cabe-nos raciocinar não tanto com base nos números, mas de acordo com os princípios envolvidos na discussão.
Mesmo uma tradição libertária reserva ao poder público o “monopólio do uso legítimo da violência”
Quem defende o acesso ao armamento tem como ponto de partida o entendimento de que a possibilidade de ter e portar consigo uma arma de fogo é um direito fundamental do cidadão, e que restrições impostas pelo poder público seriam uma manifestação de paternalismo estatal, que não reflete um espírito democrático. É frequente, dentro deste raciocínio, o recurso à Segunda Emenda à Constituição norte-americana, cujo espírito inclui o direito do cidadão de se defender contra a tirania do Estado, e a menção a ditaduras do passado e do presente que desarmaram a população antes de se impor.
No entanto, não é preciso ter tendências estatizantes para contestar essa noção de um “direito fundamental ao acesso às armas”. Mesmo a tradição libertária, que defende um Estado com atribuições mínimas, lista entre essas atribuições a segurança, garantida pelo “monopólio do uso legítimo da violência”, na definição clássica de Max Weber. Por isso, a imposição de restrições à posse e ao uso de armas por cidadãos, como regra geral, não é incompatível com essa visão.
A Gazeta do Povo, por princípio – e sabemos que tal posição desagrada a muitos leitores que compartilham conosco uma concepção de mundo e do papel do Estado –, acredita que o ideal é uma sociedade desarmada, na qual o poder público tem, ordinariamente, a capacidade de manter a ordem de forma abrangente, com polícias bem equipadas para patrulhar e investigar, Judiciário eficiente, prisões seguras e um ordenamento legal construído de modo que a punição realmente sirva para a proteção da sociedade. Em tal cenário, o direito à posse de armas pelos cidadãos seria muito limitado a casos extraordinários, como o de pessoas que comprovadamente sofreram ameaças, ou moradores de zonas onde o acesso policial seria mais complicado, sujeitando uma vítima a momentos de terror nas mãos de criminosos.
Flavio Quintela: Desagradando gregos e troianos (15 de janeiro de 2019)
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Mas como proceder no caso brasileiro, em que vivemos um verdadeiro caos na segurança pública? É intolerável que tenhamos taxas de homicídios maiores que as de países em guerra civil, e que nosso sistema de repressão ao crime seja tão falho – desde os altos índices de crimes não resolvidos até uma legislação penal e política carcerária lenientes, que permitem aos bandidos retornar logo às ruas sem terem cumprido a totalidade de sua dívida com a sociedade. Some-se a isso uma sociologia torta que atribui o crime a qualquer outro fator (até mesmo à vítima), menos à responsabilidade individual de quem faz a escolha de apontar uma arma ou puxar um gatilho, ato que tem se tornado cada vez mais corriqueiro, dados os vários casos em que assaltos terminam em morte mesmo que a vítima nem sequer esboce reação, sendo executada por puro capricho do bandido.
Aqui, é evidente que alguma possibilidade ampliada de acesso às armas para autodefesa precisa ser considerada. O desarmamento total que alguns militantes defendem, no contexto brasileiro, pode significar colocar a sociedade à mercê da bandidagem. O próprio Estatuto do Desarmamento parece compreender essa realidade, reconhecendo a possibilidade da posse de arma em certos casos, mas deixando os detalhes para a regulamentação pelo Poder Executivo. As regras anteriores, no entanto, dificultavam ao máximo a aquisição de uma arma mesmo por quem cumprisse todos os requisitos legais, denotando uma visão mais rigorosa que aquela do próprio espírito da lei.
Bolsonaro, guiado pela convicção do “direito geral ao armamento”, levou a regulamentação na direção oposta, mais ampla, a nosso ver, que a intenção do Estatuto, ainda que não tenha mexido em algumas exigências importantes, como a necessidade de o comprador de uma arma demonstre estar capacitado a usá-la, tanto do ponto de vista psicológico quanto do ponto de vista de destreza. Chegou até a implantar determinações adicionais, como a necessidade de um cofre ou outro local com tranca para armazenar a arma, caso seu dono viva com “criança, adolescente ou pessoa com deficiência mental” – uma exigência que irritou os defensores do direito ao uso de armas, mas que se mostra bastante razoável para a proteção de vulneráveis.
Leia também: As armas dos criminosos e a utopia do desarmamento (artigo de Bene Barbosa, publicado em 9 de março de 2015)
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O próprio Bolsonaro, no entanto, já deixou claro que a regulamentação é apenas um primeiro passo. Agora, trata-se de ampliar possibilidades ainda dentro do marco do Estatuto do Desarmamento. A próxima etapa seria revogar o próprio Estatuto, o que nos preocupa profundamente.
Nossa opção pelo desarmamento se baseia na convicção de que armar a população não é a solução para os problemas da segurança pública, que exigem ação especializada; de que não existe um direito geral à posse e ao uso de armas; e de que uma sociedade armada, especialmente quando a recente polarização desafia o conceito do brasileiro cordial, é um risco que não gostaríamos de correr. Não negamos as circunstâncias em que alguém deva poder ter uma arma, e defendemos que, nesses casos, a burocracia deve ser reduzida ao estritamente necessário, sem obstáculos indevidos do poder público. Mas não se pode desprezar o alerta de especialistas na área quanto às possibilidades do que descrevemos em uma ocasião anterior como “receita para tragédias cotidianas”. Evidentemente, é possível que estejamos errados e que a experiência da aplicação do decreto se mostre positiva, mas é algo impossível de prever a esta altura, em que a intuição aponta para a direção oposta.
O que precisamos é de um país que dificulte ao máximo a vida do criminoso: mais policiamento ostensivo; altas taxas de resolução de crimes violentos, não apenas de homicídios; uma legislação penal que efetivamente sirva para manter o bandido longe da sociedade por tempo proporcional ao seu crime, sem as benesses que os devolvem rapidamente às ruas; e um sistema carcerário eficiente – frentes em que o governo Bolsonaro também pretende lutar. Que o faça até com mais empenho que o demonstrado para colocar armas nas mãos do brasileiro.
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