Uma das maiores dificuldades das negociações comerciais em nível multilateral nos últimos anos é conseguir colocar todos os interessados – ou pelo menos a maior parte deles – de acordo sobre algum avanço específico; basta verificar a história das grandes rodadas de negociação e conferências ministeriais ocorridas no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Trata-se de um ambiente onde não há santos: países que em determinada ocasião são vítimas da intransigência de outras nações não hesitam em bloquear acordos que prejudiquem seus interesses, e também o Brasil entra nessa dinâmica. Não é à toa que acordos bilaterais ou envolvendo um número menor de atores têm se tornado mais frequentes, como meio de contornar o impasse nas negociações multilaterais.
Justamente por ser tão difícil obter amplos consensos é que se deve comemorar o Tratado Internacional de Tecnologia da Informação (ITA), “destravado” na semana passada após algumas concessões finais, e que deve ser assinado por representantes de diversos países e blocos econômicos até o fim desta semana. O ITA representa o primeiro grande acordo para eliminação de tarifas em quase duas décadas, o que justificou o entusiasmo demonstrado no sábado, dia 18, pelo diretor-geral da OMC, o brasileiro Roberto Azevêdo, em postagem no Twitter.
O ITA elimina tarifas de importação de centenas de produtos de tecnologia – desde os mais triviais, como videogames e aparelhos de GPS, até semicondutores e aparelhos de uso médico-hospitalar. O comércio de produtos de tecnologia movimenta anualmente, em todo o mundo, cerca de US$ 4 trilhões, e o acordo deve cortar US$ 1 trilhão em tarifas. Estima-se que, com a eliminação dessas tarifas, o PIB global seja elevado em US$ 190 bilhões por ano. Os 80 signatários respondem por 97% do comércio mundial de itens de tecnologia, e incluem potências como Estados Unidos, Japão, China, Coreia do Sul e União Europeia, além de vários de nossos vizinhos latino-americanos, como Colômbia e Peru.
Certos grupos preferem o caminho mais fácil, de criar dificuldades para todos de forma a compensar as suas próprias dificuldades
Mas, apesar de o próprio presidente da OMC ser brasileiro, seus compatriotas em Brasília julgaram que aderir ao ITA não era uma boa ideia: o governo brasileiro ficou de fora do acordo. Se empresas localizadas aqui exportarem itens de tecnologia para algum dos signatários do ITA, esses produtos não pagarão tarifas de importação em seu destino; mas a recíproca não será verdadeira, pois os itens trazidos do exterior continuarão a ser taxados, aumentando seu preço aqui. Uma solução nada conveniente para o consumidor final brasileiro, mas muito atraente para a indústria, como admite claramente o presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), Humberto Barbato, que disse em entrevista à Folha de S.Paulo que “nunca quisemos participar do ITA”.
A recusa brasileira em aderir ao Tratado Internacional de Tecnologia da Informação inevitavelmente traz à mente a lembrança nefasta da Lei de Informática, lançada em 1984 e que criou uma reserva de mercado para a indústria nacional por oito anos, ao fim dos quais os produtos nacionais deveriam ser capazes de concorrer em pé de igualdade com o que era feito no exterior. Se por um lado a lei forçou o surgimento de uma mão de obra nacional especializada, o objetivo final não foi atingido e o desenvolvimento tecnológico nacional acabou retardado. As restrições atuais não são tão drásticas quanto as dos anos 80, já que os produtos estrangeiros podem entrar livremente no país, embora pagando taxas às vezes exorbitantes. Mas o espírito que gerou a Lei de Informática – a combinação entre pressão empresarial e governo nacionalista – deixou suas marcas na recente decisão brasileira, que isola ainda mais o país no comércio internacional.
Não se pode negar que há fatores internos que tiram a competitividade do produto nacional. Mas, em vez de pressionar pela eliminação desses fatores – por exemplo, tornando a carga tributária mais racional e melhorando a precária infraestrutura, que encarece tudo o que se faz por aqui –, certos grupos preferem o caminho mais fácil, de criar dificuldades para todos de forma a compensar as suas próprias dificuldades. Uma estratégia que prejudica o consumidor brasileiro e, no longo prazo, perpetua deficiências que comprometerão o produto nacional.