A primeira baixa da intervenção federal no Rio de Janeiro devido ao caos da segurança pública naquele estado foi a reforma da Previdência. Aquela que era a grande aposta de Michel Temer, que levou o governo a comprar uma boa briga pelo futuro do nosso sistema de aposentadorias, que indispôs o Planalto com grupos interessados mais na proteção dos próprios privilégios que na situação fiscal do país, caiu antes que o general Braga Netto esquentasse a cadeira de interventor responsável por administrar a segurança pública fluminense.
O roteiro foi até que bastante simples: a reforma da Previdência depende de alteração na Constituição, e a Carta Magna, em seu artigo 60, proíbe que ela seja emendada “na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio”. Ou seja, se a intervenção realmente durar até o fim do ano, como é o plano original, nenhuma PEC pode ser votada até 2019. Lideranças ligadas ao governo chegaram a cogitar a hipótese de suspender por um único dia a intervenção para permitir que a reforma da Previdência fosse votada e, em caso de aprovação, promulgada, após o que a intervenção no Rio de Janeiro voltaria a vigorar. Uma autêntica gambiarra; Temer, constitucionalista de renome que é, bem sabe que isso teria um mau desfecho no Supremo Tribunal Federal. Assim, depois de lançada e rechaçada essa possibilidade, veio o golpe final: na segunda-feira, o ministro Carlos Marun anunciou oficialmente que, em vez de tentar aprovar a reforma da Previdência, o governo lançará um pacote de 15 outras medidas que não dependem de alteração constitucional – muitas delas importantes, mas nenhuma tão fundamental quanto a reforma que está sendo engavetada.
O governo avaliou não ter mais como conseguir os votos para a reforma da Previdência e resolveu salvar as aparências duplamente
Esse fim – “não com uma explosão, mas com um suspiro”, para usar as palavras de T.S. Eliot no poema Os homens ocos – não nos permite cogitar outra coisa: essa sequência temporal foi desenhada intencionalmente. O governo avaliou não ter mais como conseguir os 308 votos para aprovar a reforma da Previdência e resolveu salvar as aparências duplamente. O Planalto não sai derrotado formalmente, e ainda ganha pontos com a população ao propor uma forma inédita de enfrentar uma questão que o brasileiro considera uma das mais preocupantes. O Congresso, que vinha desfigurando a reforma da Previdência para agradar grupos ansiosos por defender seus privilégios, não se desgasta, e Rodrigo Maia, o presidente da Câmara, não fica com a pecha de mau articulista. O assunto fica para a próxima legislatura (e o próximo presidente) .
Estamos diante de um duplo escárnio. De repente, o governo que passou meses tentando convencer o Brasil da urgência e da necessidade de reformar a Previdência diz à população que, no fim, o assunto não é tão importante assim a ponto de continuar sendo uma obsessão do governo; as mudanças que eram imprescindíveis podem esperar mais um pouco. E, ainda por cima, mostra que a intervenção em si está motivada mais por considerações políticas que por uma genuína preocupação com o cidadão do Rio de Janeiro, abandonado e presa fácil da bandidagem, organizada ou não.
Opinião da Gazeta: Intervenção no Rio de Janeiro (editorial de 16 de fevereiro de 2018)
Haveria alternativa? Não há dúvida de que sim. Se o governo avaliasse que a derrota era inevitável e que não valeria a pena nem mesmo discutir o assunto no plenário da Câmara – discussão que poderia servir pelo menos para tentar desmontar a espiral de desinformação que colocou boa parte da opinião pública contra a reforma –, o correto seria vir a público, reforçar a necessidade do projeto e, com toda a transparência, admitir que a PEC não teria como prosperar e por isso seria abandonada. Em vez disso, o Planalto usou a intervenção como cortina de fumaça, tirando-a da cartola sem nem mesmo ouvir o Conselho da República e o Conselho de Segurança Nacional – consultas exigidas pela Constituição, mas que Temer deixou para realizar nesta segunda-feira, quando o decreto de intervenção já tinha sido assinado na semana anterior –, sem apresentar quase nenhum planejamento ou medidas concretas para conter o caos no Rio, e ainda por cima justificando-se com a alegação de que havia reavaliado a situação e decidido que a segurança era prioridade.
Motivos para a intervenção federal no Rio não faltam, pois a lei e a ordem já estão ausentes de muitíssimas áreas. Mas fazê-la da forma como foi feita, usando-a para mascarar um fracasso iminente, foi um grande erro. Qualquer brasileiro bem-intencionado espera que a intervenção tenha sucesso e que o Rio de Janeiro volte a ter paz, mas o país também precisa desesperadamente das mudanças na Previdência. Se havia alguma chance de sucesso na aprovação da reforma, não haveria motivo para planejar a sequência dos fatos de maneira que ambas as necessidades fossem contempladas; se a derrota era certa, o governo deveria ter agido com honestidade diante da população.