Brasil e Argentina hesitaram um pouco, mas, juntamente com o Paraguai, tomaram uma decisão corretíssima para fazer do Mercosul um baluarte da democracia no continente sul-americano: na terça-feira, os quatro países fundadores do bloco – grupo que também inclui o Uruguai – resolveram exercer de forma colegiada a presidência da entidade, impedindo, assim, que a Venezuela assumisse o comando rotativo do Mercosul, o que estava previsto para ocorrer em julho do ano passado.
O país governado pela ditadura bolivariana de Hugo Chávez e, com a morte deste, por Nicolás Maduro só entrou no Mercosul, em primeiro lugar, graças a uma artimanha de seus aliados. A adesão de um novo país depende do consenso entre os membros, mas o Paraguai vinha bloqueando as aspirações chavistas. Com o impeachment-relâmpago de Fernando Lugo, em 2012, Dilma Rousseff, Cristina Kirchner e Pepe Mujica viram a chance de ouro para botar os amigos na festa: suspenderam o Paraguai, alegando que houvera violação dos compromissos democráticos em Assunção, e com isso removeram o obstáculo à adesão venezuelana.
Cláusulas democráticas não são enfeites
Mas os ventos mudaram: a esquerda caiu no Brasil e na Argentina, os dois principais membros do bloco, e uma diplomacia livre de camaradagens ideológicas lembrou o óbvio: que a Venezuela não havia nem sequer finalizado sua adesão, pois faltava-lhe cumprir os compromissos assumidos em 2006, ocasião em que se iniciaram os trâmites para a entrada da Venezuela no Mercosul. Entre esses compromissos, destaca-se o Protocolo de Assunção sobre Compromisso com a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, de 2005, segundo o qual “a plena vigência das instituições democráticas e o respeito dos direitos humanos e das liberdades fundamentais” é essencial para o processo de integração regional – a expressão é idêntica à usada no Protocolo de Ushuaia, de 1998.
E ninguém com um verdadeiro conhecimento do que seja a democracia admitirá que se chame de democrático um país onde se encarceram adversários políticos do governo por motivos fúteis; onde o governo submete os poderes Legislativo e Judiciário e, diante de uma derrota eleitoral para o Parlamento, passa a retirar-lhe poderes; e onde a imprensa independente é perseguida com o cancelamento arbitrário de concessões e imposição de dificuldades para fazer negócios essenciais, como a aquisição de papel jornal – e essas são apenas algumas das violações cometidas ao longo dos anos por Chávez e Maduro. Nem mesmo o governo uruguaio, de esquerda, teve coragem de admitir que na Venezuela vigora a democracia plena: seu chanceler, Rodrigo Nin Novoa, chamou o país, em julho, de “democracia autoritária”, uma bizarrice óbvia; o Uruguai chegou a anunciar sua disposição de passar a presidência do Mercosul à Venezuela, mas no fim não se opôs ao comando colegiado, preferindo abster-se da decisão para salvar as aparências com os integrantes mais radicais de sua base de sustentação.
O prazo para a Venezuela ter se adequado aos documentos do Mercosul expirou em 12 de agosto, pouco mais de quatro anos depois da formalização da entrada do país no bloco. Os quatro países fundadores concederam a Maduro uma prorrogação do prazo, que agora vai até 1.º de dezembro – depois disso, o país corre o risco de ser suspenso, como o Paraguai havia sido na manobra de Dilma, Cristina, Mujica e Chávez. Este parece ser o desfecho mais provável, que só seria evitado se houvesse uma enorme reviravolta interna ou se Brasil, Argentina e Uruguai retomassem a postura camarada de outras épocas.
A Venezuela, ainda que mergulhada no caos econômico, não deixa de ser um dos principais players sul-americanos, motivo pelo qual sua participação na integração econômica do continente é relevante. Mas isso jamais pode ocorrer tendo como preço a supressão das liberdades. Cláusulas democráticas não são enfeites: elas são o compromisso com a expansão da democracia em uma região que já esteve quase que inteiramente dominada pelo autoritarismo. Ignorá-las seria um retrocesso, e felizmente os membros do Mercosul estão compreendendo isso.