O avanço acelerado da variante ômicron do coronavírus trouxe de volta à tona uma antiga vulnerabilidade da estratégia brasileira de combate à pandemia de Covid-19: as deficiências na testagem para identificar os contaminados, de forma que eles possam se isolar e, com isso, impedir que se tornem transmissores da doença. Logo no início da pandemia, quando a possibilidade de uma vacina ainda era um sonho distante, os países que tiveram mais sucesso no controle da Covid foram aqueles que respondiam rapidamente a cada confirmação de infecção, testando também o máximo possível de pessoas com quem o doente havia tido contato. O Brasil jamais conseguiu chegar a esse nível de resposta e, se o país já deixou para trás o problema da falta de vacinas, o mesmo não ocorreu com os testes; com o aumento substancial na demanda por testagem causado pela ômicron, duas consequências surgem no horizonte: a demora no agendamento e a falta pura e simples de testes, risco apontado pela Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed).
A ênfase na testagem se torna ainda mais importante porque a ômicron, além de ser muito mais contagiosa que as demais cepas, também tem apresentado menor agressividade, o que leva a uma proporção muito maior de casos assintomáticos ou com sintomas muito leves. Muitas dessas pessoas provavelmente só tomarão a iniciativa de fazer um teste para Covid caso saibam que alguém próximo se infectou; se tiverem contraído a doença inadvertidamente, em alguma outra circunstância, é possível que sigam adiante com sua vida normalmente, contaminando outros e contribuindo (mesmo que sem intenção alguma) para que a pandemia continue causando estragos.
Se o cancelamento de eventos em que a aglomeração é inevitável, como o carnaval de rua, surge como decisão prudente, nem de longe estamos em um cenário que justificaria restrições mais severas como lockdowns e o fechamento de negócios
E o dano é real: o fato de a ômicron estar se mostrando menos perigosa que as variantes anteriores não significa que o coronavírus deixará de fazer vítimas. É verdade que um indivíduo saudável que teria sido mandado para um leito de hospital por outras cepas do Sars-CoV-2 tem muito mais chances de passar ileso caso se contamine com a ômicron, mas pessoas com saúde fragilizada, seja pela idade avançada, seja por outras doenças, seguem inspirando cuidados, mesmo estando vacinadas – a primeira morte no Brasil causada pela nova variante reforça essa necessidade. Mesmo que uma fração muito menor de contaminados pela ômicron precise de internação ou de UTI, se a Covid se espalhar indiscriminadamente essa fração mínima ainda representará um número absoluto capaz de pressionar o sistema de saúde.
Essas considerações, e o acompanhamento dos indicadores de situações mais graves, como internações e mortes, precisam guiar as autoridades no momento de decidir que medidas tomar para segurar a curva de contaminação. Se o cancelamento de eventos em que a aglomeração é inevitável, como o carnaval de rua, surge como decisão prudente, nem de longe estamos em um cenário que justificaria restrições mais severas como lockdowns e o fechamento de negócios. Tampouco o passaporte vacinal se torna opção mais palatável agora do que era antes do surgimento da ômicron: continua sendo uma exigência desproporcional e desnecessária em um país onde a adesão espontânea à vacinação é bastante alta. Além disso, o fato de que mesmo indivíduos vacinados podem contrair e transmitir Covid, embora a imunização comprovadamente reduza as chances de agravamento da doença, colocam em xeque a eficiência do passaporte do ponto de vista epidemiológico, já que podem ocorrer surtos mesmo em ambientes ocupados apenas por pessoas vacinadas.
Assim como temos lembrado praticamente desde o início da pandemia, qualquer medida restritiva com o intuito de combater a pandemia precisa passar pelo crivo da proporcionalidade. Infelizmente, o que vimos por muito tempo foi o desrespeito completo ao bom senso, com intervenções desnecessariamente severas ou prolongadas que cassaram direitos individuais – alguns deles ainda hoje não plenamente restabelecidos. O Brasil superou o desafio logístico da vacinação e vinha colhendo bons resultados; a ômicron, até agora, não muda substancialmente este cenário. Ajustes podem e devem ser feitos – um exemplo é o pedido do governo à Anvisa para a liberação dos autotestes – e os cuidados preventivos ainda são importantes; os brasileiros não podem se comportar como soldados que resolvem se arriscar desnecessariamente justo no momento em que seu exército está prestes a vencer a guerra. Mas nem a necessidade de precauções justifica uma nova onda de liberticídio.