No mesmo dia em que o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes lançou uma tese sem amparo nenhum na realidade para tentar reduzir o tempo de prisão de Lula, e que comentamos neste espaço, a Segunda Turma do STF foi além e tomou uma decisão que representa uma séria ameaça ao bom andamento da Operação Lava Jato. Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Mendes se uniram mais uma vez para derrotar o relator Edson Fachin e o decano Celso de Mello e beneficiar o ex-presidente, desta vez decidindo tirar da competência do juiz Sergio Moro os trechos das delações da Odebrecht que envolvam Lula.
Criou-se com isso uma situação estranha, em que esses trechos de delações são enviados para a Justiça Federal em São Paulo – que, ressalte-se, não tem um juiz exclusivo para a Lava Jato –, mas as ações penais contra Lula envolvendo o sítio de Atibaia (SP) e a doação do terreno para construção do prédio do Instituto Lula continuam com Moro. É verdade que o juiz pode usar outras provas, e que mesmo os depoimentos dos delatores podem continuar a constar do processo, embora na qualidade de testemunhas de acusação, o que tem força menor que uma delação. Mas fica aberta a brecha para que os processos todos sejam retirados da Justiça Federal do Paraná, e a defesa de Lula certamente aproveitará a oportunidade.
Quando três ministros começam a “desver” coisas óbvias, talvez já seja o caso de falar em bagunça ou caos jurídico
A estratégia dos advogados de Lula, aliás, é ir além: “não há qualquer elemento concreto que possa justificar a competência da 13.ª Vara Federal Criminal de Curitiba nos processos envolvendo o ex-presidente”, escreveu, em nota, o advogado Cristiano Zanin Martins. Em outras palavras: o Supremo acabou de deixar aberta uma porta para o petista pleitear até mesmo a anulação de sua condenação por Moro e pelo TRF4 no caso do tríplex do Guarujá, ainda que ele não tenha relação alguma com a Odebrecht (a propina veio de outra empreiteira, a OAS), mas baseando-se no fato de que Moro não seria o juiz competente para julgar esses casos. Como já não é possível prever o que vai na cabeça dos ministros do Supremo, esta possibilidade não pode ser descartada, e nem é preciso explicar o tamanho do estrago que tal avaliação causaria na Lava Jato e no combate à corrupção como um todo.
A decisão da Segunda Turma não é absurda apenas por causa de seu teor, mas também por negar uma unanimidade construída naquela mesma turma sobre o mesmo assunto poucos meses atrás. Em abril de 2017, o relator Edson Fachin decidiu enviar a Sergio Moro os trechos das delações da Odebrecht relativos ao sítio de Atibaia e ao Instituto Lula. Na ocasião, a defesa de Lula recorreu e o caso foi avaliado pela Segunda Turma em outubro do ano passado: os cinco ministros foram unânimes em manter a decisão de Fachin. A reviravolta de agora ocorreu no julgamento dos embargos de declaração a respeito do julgamento de outubro.
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Chega a ser assombroso ver o ministro Dias Toffoli abrir a divergência afirmando que não havia relação entre o que está narrado nas delações da Odebrecht e o petrolão, quando essa conexão ficou mais que estabelecida pelas informações prestadas não apenas pelos executivos da empreiteira, especialmente Marcelo Odebrecht, mas também em outros depoimentos, como o do ex-ministro Antonio Palocci. Toffoli foi seguido por Lewandowski e Mendes, responsável pelo desempate. Como foi que três ministros viram ligação entre Lula, Odebrecht e o saque à Petrobras em outubro e não a viram mais agora, nenhum deles foi capaz de explicar.
“Insegurança jurídica” está começando a se tornar um termo brando demais para descrever o que decisões como esta estão criando no país. Quando três ministros – o suficiente para formar maioria em uma turma, e um quarto do plenário – começam a “desver” coisas óbvias, talvez já seja o caso de falar em bagunça ou caos jurídico. Ou de admitir que pode estar em curso, finalmente, o “grande acordo nacional (...) com o Supremo, com tudo”, que “protege o Lula, protege todo mundo” para “estancar essa sangria”, nas célebres palavras do senador Romero Jucá e do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado.