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Editorial

Os 75 anos da ONU e a crise do sistema multilateral

Sede da ONU, em Nova York. (Foto: Anfaenger/Pixabay)

A Organização das Nações Unidas considera o dia 24 de outubro de 1945 como a data em que ela passou a existir; embora a Carta das Nações Unidas tenha sido assinada em junho daquele ano por 50 países, foi em 24 de outubro que as cinco potências da época (Estados Unidos, União Soviética, França, Reino Unido e China) e a maioria dos demais signatários a ratificaram. A ONU chega, portanto, ao seu jubileu de diamante com várias conquistas em seu papel de, na medida do possível, garantir e manter a paz mundial, mas também se vê bombardeada por líderes importantes e carregando consigo uma série de contradições e estruturas que não se atualizaram desde os tempos do pós-guerra.

Muito já se falou, por exemplo, sobre a necessidade de reforma do Conselho de Segurança, um dos principais órgãos da ONU; suas regras, que remontam à época da Guerra Fria, bloqueiam uma resposta mais firme da comunidade internacional a diversas situações em que ela é exigida, devido ao anacrônico poder de veto dos cinco membros permanentes do conselho. Também é evidente a incoerência no fato de algumas estruturas internas da ONU terem entre seus membros Estados que negam o próprio objetivo dessas estruturas – o caso mais recente é o da eleição, para o Conselho de Direitos Humanos, de China, Cuba e Rússia, três países notoriamente violadores desses mesmos direitos. Mas o grande desafio da ONU é compreender e definir que papel, afinal, a entidade pretende ter no mundo atual.

Cada país importante que desiste de jogar o jogo no sistema multilateral ajuda a entregá-lo de mão beijada aos que desejam usá-lo para avançar suas agendas daninhas

A ONU sofre, em maior escala, do mesmo dilema que vem marcando outras entidades multinacionais: o difícil equilíbrio entre o respeito às soberanias nacionais e os impulsos intervencionistas que buscam impor determinadas convicções aos países-membros, especialmente em questões de comportamento. Veja-se, por exemplo, o caso emblemático da União Europeia, nascida sob a influência das democracias cristãs que defendiam o respeito ao princípio da subsidiariedade, mas que se transformou, com o passar das décadas, em uma superburocracia altamente interventora, despertando reações que tiveram seu auge na saída do Reino Unido do bloco.

É nas conferências, conselhos e comissões que a face intervencionista da ONU se mostra de forma mais explícita, com suas tentativas – até agora, felizmente, frustradas – de impor em escala mundial determinada agenda moral que contempla, por exemplo, a legalização do aborto (camuflada sob a expressão “direitos reprodutivos”) e a ideologia de gênero. Veja-se, por exemplo, recente resolução do Conselho de Direitos Humanos, datada de setembro de 2018, sobre mortalidade materna, em que se solicita a todos os Estados-membros que garantam os ditos “direitos reprodutivos” e o direito das mulheres “a ter controle total e decidir livremente e responsavelmente sobre todos os assuntos relativos à sexualidade e à saúde sexual e reprodutiva, livres de discriminação, coerção e violência, incluindo-se a remoção de barreiras legais e o desenvolvimento e implementação de políticas, boas práticas e marcos legais que respeitem a autonomia sobre o próprio corpo e garantam acesso universal a serviços de assistência à saúde sexual e reprodutiva”. Ainda que a palavra “aborto” não apareça uma única vez no texto, qualquer pessoa acostumada ao linguajar empregado nas reuniões da ONU – especialmente depois das conferências de Pequim e do Cairo, ocorridas na década de 90 do século passado – sabe do que se trata; o documento, ainda por cima, não apresenta nenhuma ressalva sobre o respeito a legislações nacionais que protejam a vida humana por nascer.

Tamanha ênfase na engenharia social levou países importantes a questionar sua participação em um sistema que tem tão pouco apreço pelas soberanias nacionais e pelos valores de cada povo – é o caso dos Estados Unidos e até mesmo do Brasil. No entanto, é justamente das vozes de peso que o sistema da ONU mais precisa para reverter essa tendência. Sem potências mundiais ou regionais dispostas a defender a vida e a família nesses fóruns, as nações menores que compartilham desses mesmos valores – e são muitas – ficarão indefesas diante da pressão dos ideólogos. Cada país importante que desiste de jogar o jogo no sistema multilateral – por mais exaustivo que seja esse trabalho, por mais que às vezes isso pareça uma luta inútil – ajuda a entregá-lo de mão beijada aos que desejam usá-lo para avançar suas agendas daninhas.

Portanto, o que a ONU precisa, ao completar 75 anos, não é de uma debandada, mas de uma reconstrução. O objetivo do sistema multilateral é, como afirmamos em outra oportunidade, “o estímulo à cooperação mútua entre os países, o esforço para evitar conflitos e o combate sem tréguas à pobreza, não a imposição de um suposto ‘direito’ ao aborto, nem a promoção da ideologia de gênero, nem outras plataformas comportamentais que violam a dignidade humana e a soberania nacional”. Tudo isso com respeito ao princípio da subsidiariedade e aos valores e leis de cada povo. E será preciso que as nações importantes assumam seu papel de liderança nesse processo.

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