Os argentinos, pela primeira vez na história, irão às urnas em um segundo turno de eleição presidencial neste domingo. O candidato governista, Daniel Scioli, ex-vice-presidente e atual governador da província de Buenos Aires, levou a melhor no primeiro turno, realizado em 25 de outubro, mas os 37% de votos obtidos não foram suficientes para vencer no primeiro turno; ele precisará, agora, vencer Mauricio Macri, prefeito da capital federal, Buenos Aires, e candidato da oposição, que recebeu 34% dos votos em outubro. Serão decisivos os eleitores de Sérgio Massa, candidato que terminou em terceiro lugar com a adesão de 21% do eleitorado. Massa é peronista, o que o tornaria mais próximo de Scioli, mas ao mesmo tempo rompeu com o kirchnerismo e sua aliança tem partidos conservadores que optariam pelo apoio a Macri.
A grande questão envolvida nas eleições argentinas é a continuidade ou a ruptura com o modelo implantado por Néstor e Cristina Kirchner desde 2003. Algumas comparações com o Brasil são inevitáveis. Lula, que assumiu a presidência do Brasil naquele mesmo ano, pegou um país que estava no caminho da estabilização lançada pelo seu antecessor. Por outro lado, Néstor Kirchner chegou ao poder em uma Argentina que havia tido dois presidentes interinos após a grave crise de dezembro de 2001, que levou à queda de Fernando de la Rúa.
Néstor e Cristina Kirchner levaram a Argentina a uma situação que, na América do Sul, só é melhor que a da Venezuela
- Daniel Scioli: sí o sí (artigo de Gisele Ricobom, publicado em 17 de novembro de 2015)
- O fim da diplomacia do conflito (artigo de Maristela Basso, publicado em 17 de novembro de 2015)
- Parceria em crise (editorial de 23 de fevereiro de 2015)
- A decadência da Argentina (editorial de 4 de fevereiro de 2014)
No entanto, já se passou tempo suficiente para que não se possa nem pensar em culpar uma “herança maldita” pelos problemas presentes da Argentina. Em vez de colocar o país nos trilhos, Néstor e Cristina Kirchner conduziram uma política econômica que levou a Argentina a uma situação que, na América do Sul, só é melhor que a da Venezuela. Se nós, brasileiros, já nos lamentamos com uma inflação acumulada em 12 meses que beira os 10%, os argentinos têm convivido com inflações de dois dígitos já há um bom tempo – e aqui falamos da inflação real, já que os órgãos oficiais têm manipulado as estatísticas a ponto de, em fevereiro de 2012, a revista britânica The Economist ter parado de veicular as informações fornecidas pelo governo (e continua a não publicá-los até hoje). No acumulado dos últimos 12 meses, enquanto o dado oficial do Indec aponta 14,3% de inflação, pesquisadores independentes e consultorias ouvidas pela oposição no Congresso argentino estimam o índice em quase 25%.
A inflação de 2015 até deve ser menor que a de 2014, mas apenas porque a economia está desacelerando (pelo menos a Argentina ainda deve crescer 0,4% neste ano segundo a última previsão do FMI, enquanto o Brasil seguirá amargando a recessão). A política econômica dos Kirchner também levou o caos ao mercado de câmbio, em que a cotação oficial está completamente descolada do câmbio paralelo conhecido de muitos turistas que visitam a Argentina, especialmente Buenos Aires. Parte disso se deve às políticas que restringem a entrada de divisas estrangeiras no país, com sérias consequências não apenas para as pessoas físicas, mas para os empresários locais.
No campo político, os Kirchner transformaram a Argentina em uma espécie de imagem do que o Brasil poderia se tornar caso algumas das plataformas mais radicais do petismo tivessem sucesso. O aparelhamento das instituições também é a tônica no país, e a perseguição à imprensa independente culminou na Lei de Meios, desenhada sob medida para enfraquecer os grupos de mídia que não aderiram ao chapabranquismo.
O fim do kirchnerismo e sua substituição por um regime simpático ao livre mercado e afeito às liberdades democráticas seria benéfico para a Argentina, e também para o resto da América do Sul. O protecionismo exacerbado da era Kirchner não hesitou em passar por cima das próprias regras do Mercosul para prejudicar exportadores brasileiros, e ainda representa uma âncora que freia o bloco sul-americano na hora de negociar bons acordos comerciais com importantes parceiros, como a União Europeia. Mauricio Macri ainda prometeu, se eleito, denunciar a Venezuela pelas evidentes violações da cláusula democrática do Mercosul – Cristina Kircher, é bom lembrar, foi uma das artífices do plano que suspendeu o Paraguai em 2012 justamente para permitir o ingresso venezuelano no bloco. Por tudo isso, a eleição deste domingo é uma oportunidade de ouro que não convém desperdiçar.
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