Quando a população vai às urnas e elege um novo governo, espera que o eleito seja capaz de implantar o programa que apresentou durante a campanha eleitoral. Isso pode ser feito por meio da escolha de ministros e outros cargos de primeiro escalão, mas também por meio de investimentos e gastos naquilo que o governante considera prioritário. Ao menos deveria ser assim, mas no caso brasileiro qualquer presidente da República, independentemente de viés político-ideológico, tem uma margem estreitíssima de escolha: de todo o Orçamento da União, apenas 6% está genuinamente à disposição do governante para usar naquilo que considerar mais importante – todo o resto está comprometido em despesas de execução obrigatória ou cuja escolha não está nas mãos do Executivo, e sim do Legislativo.
O engessamento é fruto da “sociedade de desconfiança” em que vivemos, na qual sempre se pressupõe o pior da parte dos representantes eleitos – embora seja preciso dizer que não poucas vezes eles efetivamente dão razões para tal. Estipula-se porcentagens mínimas de investimento em saúde e educação porque se imagina que, sem tal exigência, os gestores deixarão esses serviços à míngua; as emendas parlamentares tornam-se impositivas porque, do contrário, elas serão usadas como ferramenta de barganha em que a liberação é trocada por apoio em votações importantes (como de fato já o foram em muitas ocasiões). Em uma “sociedade de confiança”, pelo contrário, um gestor seria livre para alocar os recursos públicos onde considerasse necessário, e seria devidamente punido pelo eleitor quatro anos depois caso não investisse bem; Executivo e Legislativo dialogariam com liberdade sobre os gastos considerados importantes pelos parlamentares, sem imposições nem barganhas.
O teto de gastos força gestores a compreender que o dinheiro público não é infinito e que, por isso, é preciso fazer escolhas, uma tarefa que políticos detestam porque sempre deixa insatisfeitos
Em vez de o país trabalhar para chegar a este nível, prefere-se o caminho mais fácil do engessamento, deixando-se essa margem mínima – uma das menores do mundo – para os gastos discricionários do governo, enquanto todo o resto é engolido por despesas “carimbadas” pela Constituição, por outras leis e pela vontade dos congressistas, que tentam reduzir ainda mais essa margem e se apropriar de parcela ainda maior do Orçamento. O instrumento mais recente é o das “emendas de relator”, uma ferramenta que existe para pequenas correções de caráter técnico no Orçamento, mas que nos últimos anos se transformou em uma imoralidade que envolve dezenas de bilhões de reais. O Congresso já tentou transformá-las em impositivas no Orçamento de 2020, e o acinte foi tanto que até um notório adversário do governo, como o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), apoiou o veto presidencial afirmando que havia um “golpe parlamentarista” em andamento. Para o Orçamento de 2023, o caráter impositivo dessas emendas voltou a ser sugerido, mas sem sucesso.
Como, então, desengessar o Orçamento? O alvo mais óbvio tem sido o teto de gastos, o instrumento de ajuste fiscal aprovado em 2016 e que limita a despesa global do governo, corrigindo-a apenas pela inflação. O teto, no entanto, está longe de ser o problema. Pode-se até argumentar que aprová-lo antes das reformas da Previdência e administrativa não foi a melhor ideia, e que teria sido melhor primeiro reduzir no médio e longo prazo parte importante dos gastos “carimbados” aprovando tais reformas, para só então impor o teto. Mas ele efetivamente impede que governos gastadores comprometam o futuro do país e garante que eventuais receitas extraordinárias sirvam para reduzir a dívida pública, em vez de serem torradas, não raro contratando-se despesas permanentes. Não nos passa despercebido o fato de que o próprio teto de gastos também é, de certa forma, sintoma da “sociedade de desconfiança”, pois traz embutido o pressuposto de que, sem esse freio, governantes gastarão como se não houvesse amanhã; é preciso trabalhar para que ele um dia se torne desnecessário, com gestores empenhados em tratar com respeito o dinheiro tomado do contribuinte brasileiro.
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Mas, enquanto isso não ocorre, o país precisa aprender a aplicar uma das virtudes do teto: ele força gestores a compreender que o dinheiro público não é infinito e que, por isso, é preciso fazer escolhas. Essa é tarefa que políticos detestam, pois tais escolhas sempre deixarão alguém descontente – aliados, grupos de pressão, corporações; sempre é muito mais simples elevar a despesa para que todos saiam satisfeitos. E será possível fazer melhores escolhas se finalmente as reformas que atacam o gasto público forem realizadas, em conjunto com a aplicação dos “três Ds” defendidos por Paulo Guedes desde a campanha de 2018: desindexar, desvincular e desobrigar. Isso pode ser feito de forma gradual, abrindo espaço aos poucos no Orçamento para elevar a margem que o governo teria para usar como achar melhor e implantar seu programa de governo. Afinal, quando um governante não pode executar suas plataformas porque praticamente todo o dinheiro já está empenhado em outras finalidades, também o eleitor vê traídos os seus anseios para o país.
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