Após a derrota dos separatistas no plebiscito escocês, em 2014, mais uma vez uma nação europeia se vê às voltas com ambições de independência dentro de seu território. No último domingo, o governo da Catalunha organizou um referendo, aprovado pelo parlamento da província em junho, ao lado de uma lei segundo a qual bastaria maioria simples para decidir pela separação, sem necessidade de comparecimento mínimo às urnas. No fim, a independência contou com 92% dos votos válidos, mas que valor tem tal consulta do ponto de vista legal e numérico?
A Corte Constitucional espanhola decidiu que a consulta era ilegal, e essa decisão é fundamental para compreender o que os números, sozinhos, não explicam. Já quando o parlamento catalão decidiu pelo referendo, a oposição se recusou a participar da sessão legislativa e pediu a seus partidários que não fossem votar, até porque a participação representaria um endosso à legalidade da consulta popular, o que não era o caso. Por isso, é impossível dizer que o resultado representasse a vontade avassaladora da população catalã, pois apenas 42% dos eleitores da província votaram. Nisso, o referendo catalão pouco se diferencia de consultas informais realizadas por “movimentos sociais” brasileiros sobre temas como reforma agrária e calote da dívida externa, que também têm resultados quase unânimes.
90% dos catalães aprovaram, em 1978, a Constituição espanhola que proíbe a secessão
A Constituição espanhola, já em seu artigo 2.º, proíbe a secessão ao se referir à “unidade indissolúvel da nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”, ainda que reconheça a autonomia das nacionalidades que integram o país – caso não apenas dos catalães, mas também dos bascos. Só isso já bastaria para justificar a decisão da corte suprema espanhola a respeito da ilegalidade do referendo catalão. Essa Constituição foi um marco significativo do processo de redemocratização do país após a ditadura de Francisco Franco, tendo sido aprovada em 1978 por um congresso eleito pelo povo e ratificada em referendo pela população, com direito à aprovação de mais de 90% dos catalães que foram às urnas na ocasião.
É justamente esse aspecto que nos traz a uma questão importante a considerar no caso catalão: o que fazer em uma situação na qual uma comunidade, baseada no princípio da autodeterminação, deseja a independência ao arrepio das provisões legais do país, em tempos de normalidade institucional? Parece-nos evidente que o único caminho aceitável é a via legal: os separatistas, politicamente organizados, precisariam promover uma mudança constitucional tornando possível a secessão (no Reino Unido, que não tem uma Constituição codificada como tal, o referendo escocês de 2014 foi fruto de um acordo entre o Parlamento local escocês com o governo central britânico, em Londres, o que lhe garantiu caráter legal). Qualquer outra alternativa inclusive legitima o uso da força, como ocorreu no caso espanhol.
Bruno Meirinho: A independência catalã (4 de outubro de 2017)
Leia também: A caverna dos movimentos separatistas (artigo de Thiago Bagatin, publicado em 8 de fevereiro de 2017)
No entanto, a maneira como a Guarda Civil espanhola agiu na repressão à votação, deixando quase 900 feridos, serviu apenas para acirrar os ânimos – fato reconhecido até mesmo pela Rússia, que não tem o menor interesse em ver prosperar a iniciativa catalã, já que lida com seus próprios separatistas dentro de seu território. Os atos de pancadaria, registrados em vídeo, chamaram a atenção das Nações Unidas. A comunidade internacional vem apelando por um entendimento entre os governos espanhol e catalão, mas isso só será possível com um abrandamento de ambos os lados, na retórica e no uso (ainda que legítimo) da força.
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