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A pergunta "é prudente/é seguro?" acabou substituída pelo mero "pode/não pode" legal como o critério que define como proceder

As horas que se seguiram ao incêndio que deixou 231 mortos e dezenas de feridos em Santa Maria (RS) revelaram a série de erros que levou à tragédia: o uso de material inflamável no isolamento acústico da boate Kiss; a ausência e a falha nos instrumentos de combate a incêndio dentro da casa noturna; a arquitetura do local, com apenas uma entrada e saída; a falta de comunicação que levou os seguranças a impedir a saída dos frequentadores por dois minutos que, para muitos, fizeram a diferença entre a vida e a morte; o uso de sinalizadores dentro do recinto por parte da banda que se apresentava; e o fato de a casa estar funcionando sem alvará – além da morosidade do poder público na renovação da autorização.

É fundamental que todas as circunstâncias do incêndio sejam investigadas a fundo, o quanto antes. Confrontar versões para que se possa chegar a um relato o mais verdadeiro possível sobre os minutos de pânico vividos pelas centenas de frequentadores, funcionários e músicos que estavam na Kiss. E punir os responsáveis pela tragédia. Nada disso trará de volta as vidas perdidas, nem aplacará a dor dos parentes e amigos, mas assimilar as lições de Santa Maria poderá impedir que outros episódios sigam tirando a vida de pessoas que só pretendiam uma noite de diversão.

Uma palavra que vem sendo repetida à exaustão no caso da boate Kiss é "imprudência". De fato, a tragédia de Santa Maria foi resultado de uma sucessão de imprudências, e vale a pena deter-se sobre o que o termo realmente significa – exatamente a falta da virtude da prudência, que no caso em pauta acaba substituída pelo império do papel, da autorização na parede ou da regulamentação. A pergunta "é prudente/é seguro?" acaba substituída pelo mero "pode/não pode" legal como o critério que define como proceder.

Os músicos teriam se perguntado se era prudente acender sinalizadores dentro da boate? Teriam os donos da Kiss se questionado se era prudente manter o estabelecimento em funcionamento com apenas uma porta de entrada e saída, sem identificações claras para rotas de fuga em caso de corte da energia elétrica – mesmo que eles tivessem o alvará em dia, coisa que não tinham? Tudo indica que não. E, caso tenham, sim, feito essas perguntas e respondido afirmativamente, demonstraram apenas que sua prudência estava anestesiada. Afinal, não é preciso ser um mestre do bom senso para saber que é arriscado usar fogos de artifício em locais fechados, e que um recinto lotado que tenha poucas e mal sinalizadas rotas de fuga para emergência é uma armadilha fatal. Mesmo que tudo isso seja permitido pela lei.

Muito provavelmente o episódio de Santa Maria dará início a uma onda de mais regulamentação e fiscalização intensificada. Não há dúvidas de que é preciso haver regras para o funcionamento de estabelecimentos como casas noturnas, bares e restaurantes, mas é preciso se pautar justamente pelo equilíbrio. Empresários do setor reclamam de uma enxurrada de exigências muitas vezes elaboradas apenas com o objetivo de criar dificuldades para que depois se vendam facilidades, disseminando a corrupção e formando uma verdadeira máfia de alvarás e multas.

E a fiscalização deve ser um esforço constante. Curitiba e outras cidades que já anunciaram uma intensificação nas vistorias agem muito bem ao fazê-lo; o poder público só não pode correr o risco de se deixar levar pelo impulso do momento, regredindo ao ritmo antigo assim que a indignação popular se dissipar. Tampouco é possível relaxar a fiscalização só porque a papelada deste ou daquele estabelecimento está em dia. Afinal, até agosto do ano passado o alvará da Kiss era válido, mas nada indica que até então as características da casa fossem radicalmente diferentes daquelas que agora o país inteiro conhece. Um pedaço de papel carimbado pelo poder público não teria salvo os jovens em Santa Maria – a prudência e o bom senso, sim.

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