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Editorial

Os ataques de Bolsonaro à imprensa

O presidente Jair Bolsonaro. (Foto: Sergio Lima/AFP)

“Patifes”, “canalhas”, “jornalismo podre”. Foi com esses termos que o presidente Jair Bolsonaro se referiu à Rede Globo, em dois vídeos publicados nas mídias sociais em um espaço de três dias, na semana passada. Nestas aparições, Bolsonaro não se limitou apenas aos insultos: também fez ameaças, insinuações e um apelo explícito a anunciantes para o estrangulamento financeiro de um veículo de comunicação. Para que a relação entre um presidente da República e a imprensa se deteriore até chegar a esse ponto, é preciso questionar o que ocorreu. Há motivos válidos para que Bolsonaro “perca a linha” de uma forma tão veemente, como ele próprio disse em um dos vídeos?

O estopim dos ataques feitos pelo presidente da República nos vídeos – um deles, publicado no dia 29 de outubro, e outro, no dia 31, em que comentava assuntos da semana – foi a reportagem publicada no Jornal Nacional no mesmo dia 29, segundo a qual Élcio Queiroz, um dos suspeitos do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, teria ido ao condomínio onde Bolsonaro tem residência, no Rio de Janeiro, horas antes do crime, e dito que se dirigia à casa do então deputado. As afirmações foram feitas pelo porteiro do condomínio à Polícia Civil fluminense, que investiga as mortes de Marielle e Anderson, e constam do inquérito. A reportagem ainda deixava claro que Bolsonaro não tinha como ter atendido o interfone na ocasião, pois estava em Brasília.

As ressalvas feitas na reportagem do Jornal Nacional, no entanto, não foram suficientes para o presidente, que viu na matéria uma tentativa de ligá-lo a um crime de repercussão internacional. Só isso explicaria a maneira “bastante exaltada” (nas palavras do próprio presidente) como Bolsonaro se portou nos vídeos divulgados em seus perfis nas mídias sociais. De fato, compreende-se a indignação de quem julga haver um movimento para implicá-lo em um crime – especialmente quando vem à tona a informação de que o porteiro havia mentido, e que na verdade a chamada tinha sido direcionada a outra residência, a de Ronnie Lessa, outro dos suspeitos da morte de Marielle e Anderson. Mas até que ponto a indignação justifica o que é praticamente uma declaração de guerra à emissora?

Nenhum cidadão de bem, ainda que nutra desapreço por uma ou outra emissora e grande apreço por um ou outro governante, pode alegrar-se com o que aconteceu

Um ponto que pode ter passado despercebido por muitos que compartilham da indignação do presidente é o fato de, até a noite de terça-feira, a informação oficial continuar a ser aquela dada pelo porteiro à polícia, de que a chamada tinha sido feita à residência de Bolsonaro, ainda que não tivesse sido ele a atender o interfone. Só no dia seguinte à veiculação da reportagem inicial a perícia nos áudios mostrou que os depoimentos do porteiro estavam equivocados. O Jornal Nacional destacou essa informação na quarta-feira, dia 30, acrescentando que o procurador-geral da República, Augusto Aras, também havia descartado ligação entre Bolsonaro e as mortes de Marielle e Anderson.

Ou seja, a reportagem do Jornal Nacional não estava trabalhando com informações que o Ministério Público já havia descartado, como se chegou a dizer; na verdade, o MP só descobriu a mentira do porteiro um dia depois da veiculação da primeira reportagem. Portanto, não se pode falar em uma conspiração jornalística que fez uso de informações desatualizadas para atacar um presidente da República, nem, como Bolsonaro afirmou nas mídias sociais, que, “sabendo dos fatos e podendo esclarecê-los, [a Globo] preferiu levantar suspeitas contra o presidente e alimentar narrativas criminosas”, acusação repetida em nota da Secretaria de Comunicação. Afinal, até o momento da primeira reportagem dava-se como fidedigna a informação dada pelo porteiro do condomínio de Bolsonaro em depoimento à polícia.

É impossível, aqui, não fazer um paralelo com José Afonso Pinheiro, o ex-zelador do Condomínio Solaris, no Guarujá (SP). Também ele afirmou, em depoimento ao então juiz Sergio Moro e que estava sob sigilo, que Lula visitava o tríplex 164/A, e que “todos sabiam” que a unidade “pertencia ao ex-presidente Lula (...) Até os condôminos sabiam”. Declaração divulgada também pelo jornalismo da Globo, cuja cobertura da Operação Lava Jato foi um dos fatores que levou o petismo a mirar a emissora, classificando-a como “golpista”.

Bolsonaro tem todo o direito de se sentir atingido pela reportagem do Jornal Nacional, mas para isso ele tem à disposição o recurso à Justiça, que decidirá por uma reparação caso entenda ter havido algum crime contra a honra do presidente. Mas nem a convicção de que houve erro, ou, pior ainda, má-fé – e estamos certos de que, neste episódio, não houve nem um, nem outro – justifica a reação do presidente, que empregou termos pesadíssimos a ponto de se poder caracterizar a injúria; disse que anunciantes deveriam ter “vergonha” de comprar espaço publicitário na programação do canal; usou a renovação da concessão em 2022 para ameaçar a emissora, insinuando que teria havido “jeitinho” em renovações anteriores; e ainda fez referências falsas à situação financeira da empresa, reproduzindo a postura da qual afirma ser vítima.

Autocratas e totalitários são conhecidos por desejar uma imprensa meramente subserviente e jogar o peso do Estado para suprimir as vozes críticas. Seria esta a intenção de Bolsonaro? Não nos parece que seja assim, nessa extensão, mas a virulência do presidente contra os veículos que ele enxerga como inimigos – notadamente a Rede Globo e a Folha de S.Paulo – é objetivamente, e independentemente da intenção, um gravíssimo ataque a um dos pilares centrais da democracia. Ainda que se admita, nessa interpretação benigna, que o presidente, levado pela indignação, não se tenha dado conta disso, sua atitude é inadmissível. Ela cria um clima perigoso, o ambiente em que se mina na sociedade a noção do valor da liberdade de expressão. Aliás, nenhum cidadão de bem, ainda que nutra desapreço por uma ou outra emissora e grande apreço por um ou outro governante, pode alegrar-se com o que aconteceu. Se um veículo de comunicação erra ou divulga informações falsas, as vias judiciais para a reparação já estão devidamente estabelecidas, com farta jurisprudência a respeito. Cabe recorrer a elas, em vez de retaliar as empresas jornalísticas como fizeram, por exemplo, Cristina Kirchner com a Lei de Meios argentina, ou Hugo Chávez, que sufocou jornais independentes controlando o acesso ao papel, e em 2006 não renovou a concessão da RCTV, a maior emissora venezuelana, e que se opunha ao ditador, levando-a a sair do ar em maio de 2007.

A sociedade precisa de uma imprensa que atue como fiscal de governos e de governantes. Foi essa postura que ajudou a mostrar ao povo o grande mal que o PT havia feito ao país, alimentando uma reação que contribuiu para a eleição de Bolsonaro. O presidente, que quando deputado já era alvo desse escrutínio jornalístico, precisa ter consciência de que, no posto máximo da nação, está ainda mais sujeito a críticas e à análise de suas ações, e tem de aprender a lidar com isso. Não tanto pela reação exaltada diante de reportagens que o atacam, embora ela também seja preocupante; mas, principalmente, pelas armas que invoca para lutar o que enxerga como uma cruzada contra uma imprensa hostil. Não precisamos repetir aqui o caminho trilhado por vizinhos sul-americanos, que, afirmando estarem combatendo “inimigos da nação”, calaram o jornalismo até sobrarem apenas os bajuladores.

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