Chilenos comemoram resultado de referendo que rejeitou texto da nova Constituição do país, em 4 de setembro de 2022.| Foto: Alberto Valdés/EFE
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A rejeição do povo chileno ao texto destinado a ser a nova Constituição do país foi inequívoca: em um referendo no qual o voto foi obrigatório, quase 25 pontos porcentuais separaram o “rejeito” do “aprovo”, interrompendo o que seria a “brasileirização” do texto constitucional chileno. Com o resultado, a carta do período pinochetista, emendada inúmeras vezes para acomodar o retorno da democracia, seguirá valendo por mais algum tempo, até que um novo texto seja costurado, em um processo cujo desenrolar ainda é incerto.

Em maio de 2021, boa parte do eleitorado conservador e de centro-direita se mostrou desinteressado pela escolha dos constituintes. Em um país com 14,9 milhões de eleitores, apenas 6,2 milhões foram votar, uma abstenção de quase 60%. O resultado foi uma Assembleia Constituinte majoritariamente de esquerda, a ponto de as demais forças políticas do país não chegarem a ter o mínimo necessário de cadeiras para barrar propostas mais radicais. Com este “passe livre”, a esquerda chilena desenhou uma Constituição à sua imagem e semelhança, com uma coleção infindável de direitos sem explicar ao certo como o Estado chileno seria capaz de cumpri-los – um roteiro que o Brasil conhece desde 1988 – e repleta de pautas identitárias, incluindo a legalização do aborto.

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O povo chileno deixou claro que não quer uma reinvenção da roda baseada em premissas identitaristas e que descarta todos os aspectos positivos do modelo liberal atual

Ao agir desta forma, os constituintes chilenos ignoraram a existência de boa parte de compatriotas que não compactuavam com tais pautas, e desprezaram todos os avanços sociais e econômicos obtidos pelo modelo liberal herdado da ditadura de Pinochet, e que permitiu ao Chile liderar a América Latina em indicadores importantes como IDH e liberdade econômica. À medida que o texto foi ganhando seus contornos finais, compreensivelmente a rejeição popular ficava mais clara, uma tendência capturada pelas pesquisas de opinião – em fevereiro, elas davam 20 pontos porcentuais de vantagem ao “aprovo”, mas em meados de abril, com os trabalhos da assembleia ainda em andamento, a virada já havia ocorrido. Nem o apoio extraoficial do presidente Gabriel Boric, nem a estratégia de “aprovar para reformar” ajudaram a campanha pela aprovação, até porque não havia a menor garantia legal de que o texto, uma vez ratificado, seria realmente alterado para contemplar as demandas dos chilenos de centro-direita e conservadores.

Seja porque a húbris esquerdista não considerou em nenhum momento a possibilidade de derrota, seja por outros motivos que poderiam até incluir o esquecimento puro e simples, não há clareza sobre o que ocorreria em caso de rejeição do texto constitucional no referendo. A mesma Assembleia Constituinte eleita em 2021 teria de redigir uma segunda proposta? Seria preciso eleger novos constituintes? Boric convocou representantes de todas as forças políticas chilenas para negociar a continuação do processo constitucional, pois de qualquer forma será preciso entregar ao país uma nova Constituição: o resultado do plebiscito de 2020 segue em vigor, e nele os eleitores, por ampla maioria, decidiram pela redação de uma nova carta. Além disso, Boric deve promover uma reforma ministerial que pode levar o governo mais para o centro.

O Chile é, em muitos aspectos, um exemplo para a América Latina, mas seu modelo não é perfeito. Seu liberalismo pode e deve ser aperfeiçoado, abrindo mais espaço para uma atuação subsidiária do Estado e para um cuidado especial com a parcela mais pobre da população, sem cair em assistencialismos que perpetuam situações de dependência. Não há como dizer ao certo se é isso que os chilenos desejam, mas agora já se sabe com muita clareza o que o povo não quer: uma reinvenção da roda baseada em premissas identitaristas e que descarta todos os aspectos positivos do sistema atual. A vitória incontestável do “rejeito” – a título de comparação, Boric venceu o segundo turno da eleição presidencial de 2021 com 11 pontos de vantagem sobre José Antonio Kast – é um recado que o presidente e toda a esquerda chilena não têm como ignorar.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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