Quais são os limites e requisitos para que alguém possa exercer uma profissão? Esta pergunta voltou ao debate público depois que o ministro da Economia, Paulo Guedes, propôs uma emenda à Constituição Federal, acrescentando dois artigos às disposições sobre a ordem econômica e financeira do país, fundada “na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa”, como afirma o artigo 170. O texto determina que, como regra geral, “a lei não estabelecerá limites ao exercício de atividades profissional ou obrigação de inscrição em conselho profissional”, na prática dispensando vários profissionais da necessidade de se inscrever em um conselho – e pagar sua respectiva anuidade – para que possa trabalhar em determinado ramo, exigência corriqueira no Brasil de hoje.
Um dos vícios mais daninhos de nossa república cartorial é colocar um diploma ou certificado acima das reais capacidades dos indivíduos. É esse espírito que motiva, por exemplo, inúmeros projetos de lei que buscam “regulamentar” as mais diversas profissões, quase sempre impondo a exigência de algum curso superior ou técnico, abrindo a única exceção do “direito adquirido” para os que já estão no ramo há determinado tempo. O Congresso Nacional costuma aprovar sem muitas dificuldades esse tipo de projeto. Às vezes, o texto acaba vetado pela Presidência da República – em 2015, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff vetou as regulamentações das profissões de garçom, decorador e DJ; outras vezes, a lei acaba sancionada, como no caso da Lei 13.653/18, que regulamenta a profissão de arqueólogo e exige bacharelado ou pós-graduação em Arqueologia.
Mas, para muitas profissões, nem mesmo o diploma é suficiente; é preciso, também, inscrever-se no respectivo conselho de classe (e pagar fielmente as anuidades) para que o profissional possa até mesmo descrever-se como tal. Administradores, economistas, psicólogos, químicos, contadores, corretores de imóveis, farmacêuticos e diversos outros profissionais têm sua carreira inviabilizada caso não possuam essa inscrição. Um caso extremo é o dos músicos, que até 2011 eram obrigados a registrar-se na Ordem dos Músicos do Brasil para atuarem na área – foi necessário que o Supremo Tribunal Federal derrubasse decisões de segunda instância que exigiam a inscrição no conselho de classe. Na ocasião, a relatora, ministra Ellen Gracie, apresentou argumentos que serviriam também para várias outras carreiras: “Nem todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional”.
Para a maioria das carreiras, nem mesmo o diploma técnico ou universitário deveria ser exigência para que alguém pudesse atuar em determinado ramo
“A regra é a liberdade” é a frase que resume tudo. Os indivíduos devem ser livres para escolherem e exercerem as carreiras que desejarem e que considerarem mais adequadas para prover o sustento próprio e o de suas famílias, e para colaborar com o bem comum, sem nenhuma restrição indevida – pois há algumas poucas restrições aceitáveis, como veremos adiante. É este princípio que nos leva a concluir que, para a maioria das carreiras, nem mesmo o diploma técnico ou universitário deveria ser exigência para que alguém pudesse atuar em determinado ramo. Regulamentações fazem do certificado uma chave que tranca o mercado para os de fora, que só podem entrar se conseguirem sua cópia desta chave. Mas o que atrapalha a entrada também dificulta a saída: se um profissional percebe que seu futuro está em outra carreira, a chave que ele tem hoje não lhe servirá de nada para abrir as portas de um novo mercado de trabalho, e serão necessários mais alguns anos até ele conseguir a nova chave. O que parecia trunfo vira maldição.
E a liberdade do profissional também é a liberdade do cliente, do consumidor e do empregador, que podem usar os critérios que acharem melhor na hora de contratar alguém. Se ele julgar mais apropriado buscar apenas quem tem o respectivo certificado ou diploma, é livre para isso; se, ainda por cima, fizer questão de um profissional com registro no conselho de classe, é seu direito. E, se considerar todos esses requisitos dispensáveis, também poderá fazê-lo. Maus profissionais e prestadores de serviço existem em todos os campos, inclusive entre diplomados e registrados; que seja o mercado – ou, dependendo da gravidade da situação, a Justiça – a excluí-los.
A PEC 108, é verdade, não ataca o mal pela raiz; as regulamentações infelizmente continuarão vindo, se depender da pressão de classes profissionais e da bondade de parlamentares e governantes. Mas ela elimina uma distorção no fim da cadeia. De fato, não faz o menor sentido que um profissional devidamente qualificado, seja na academia, seja pelo exercício contínuo de determinada atividade, se veja impedido de trabalhar no ramo que escolheu apenas por não ter um registro em conselho de classe. Esta é uma restrição desproporcional, que aproxima os conselhos de classe das guildas medievais e tem como consequência o estabelecimento de uma reserva de mercado e a consagração da mentalidade segundo a qual o papel – o diploma, o registro – vale mais que o talento individual.
Disso, evidentemente, não devemos concluir que os conselhos de classe não têm relevância. Eles são instrumentos importantes para estabelecer diretrizes e boas práticas profissionais; para coibir e fiscalizar a ação de charlatães; e, ao lado dos sindicatos, para atuar na esfera pública em defesa da profissão. O que a PEC faz é simplesmente tirar da inscrição nessas entidades seu caráter de condição sine qua non para a atividade profissional. Como já afirmamos, o registro facultativo no conselho de classe pode, inclusive, ser usado por indivíduos e empresas como um critério para contratar determinado profissional, caso considerem que a pertença à entidade atesta a qualificação do indivíduo – algo que pode até mesmo servir de estímulo para que tais conselhos invistam no aprimoramento profissional de seus membros, conferindo-lhes uma vantagem competitiva no mercado de trabalho.
É preciso ressaltar, no entanto, que a regra estipulada pela PEC é geral, mas não universal. A regulação continuará sendo necessária quando há “risco de dano concreto à vida, à saúde, à segurança ou à ordem social”. Seria impensável, por exemplo, deixar que qualquer um pudesse atuar como médico sem que tivesse o diploma em Medicina e sem o registro no respectivo conselho, pois o que está em jogo, aqui, é nada menos que a vida dos pacientes. Este é um caso em que apenas o curso universitário pode dar ao futuro médico o conhecimento e a prática necessárias, e em que se justifica a obrigatoriedade do registro profissional. As restrições não impedem que erros médicos ocorram, mas sem elas certamente o cenário seria muito pior. O mesmo pode-se dizer de outras profissões – pensemos, por exemplo, nos erros de engenharia que provocam desastres fatais.
A PEC 108, portanto, é um passo importante na direção da liberdade profissional no Brasil. Os conselhos de classe precisam deixar para trás a fixação pelo papel e pelo carimbo; aqueles que souberem se reinventar conquistarão a adesão voluntária dos profissionais e serão vistos como referência confiável por aqueles que utilizam os serviços de cada categoria.