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Editorial

Os mais iguais

Todos são iguais perante a lei, reza a Constituição Federal do Brasil. Na vida prática, no entanto, há alguns que são "mais iguais" que outros – pois que a lei lhes concede direitos especiais que não se aplicam aos cidadãos comuns, ao homem das ruas. Se as diferenças de tratamento atuais já são, em princípio, questionáveis, acresça-se agora o perigo iminente de ampliação do contingente de "mais iguais".

De fato, está para chegar à Câmara Federal uma proposta de emenda constitucional – a PEC 358, já aprovada no Senado – que estende para ex-autoridades o benefício do foro privilegiado, já concedido às que ainda estão no exercício de funções públicas, pelo qual se garante também a elas a prerrogativa de só poderem ser julgadas, mesmo que por improbidade administrativa, pelos tribunais superiores. Se aprovada, também os ex-ocupantes de cargos livram-se do perigo de caírem nas mãos dos juizados de província, os quais passam a se incumbir apenas dos casos dos "menos iguais".

A estes se reservará o papel de encaminhar para as prisões os que furtam a lata de margarina, mas não mais julgarão os que, utilizando-se dos poderes que lhes conferem o múnus de autoridade, prevaricam e dão-se ao hábito de desviar recursos monumentais do Erário, em prejuízo da população que recolhe religiosamente os impostos e que quer vê-los transformados em educação, saúde, segurança, estradas...

No fundo, ao que tudo indica, ao se conceder proteção mesmo àqueles que já deixaram a condição de autoridades, quer-se tornar efetiva a segunda parte do adágio criado por Stanislaw Ponte Preta – "restaure-se a moralidade ou locupletemo-nos todos!" – tal a largura da porta que se abre para a impunidade ampla, geral e irrestrita de tantos quantos forem apanhados malversando recursos públicos. Pois é a impunidade o efeito prático que terá a emenda constitucional se aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional.

Os juízes federais, por meio de suas entidades representativas, perceberam o fundo do poço a que pretendem chegar os parlamentares que – com o denodo já verificado no Senado – defendem e votam favoravelmente à mudança do ainda restritivo artigo 97 da Constituição Federal. E por isso fizeram, na última sexta-feira, uma rodada nacional de manifestações contra a medida.

Eles sabem que, a partir do dia em que o projeto se transformar em lei, milhares de processos por improbidade administrativa que hoje tramitam nas instâncias inferiores em todo o país serão imediatamente transferidos para a responsabilidade das cortes superiores. Torna-se impossível, desta forma, aos poucos ministros que compõem essas cortes, julgar as ações em tempo minimamente razoável. E, como se sabe, não é justa a Justiça que sempre tarda – pois no mais das vezes a tardança é sinônimo pronto e acabado de impunidade.

Como observou o juiz federal Friedmann Wendpap, presidente da Associação Paranaense dos Juízes Federais, em artigo publicado sexta-feira neste jornal, sob o sugestivo título Feudalismo pós-moderno, "cerca de 10 mil processos serão subtraídos da apreciação de 5 mil juízes de primeira instância e remetidos para os Tribunais, onde a proporção será de 20 processos para cada julgador. A intenção subliminar nessa emenda constitucional" – reforça Wendpap – "é afogar os Tribunais com um volume imenso de processos muito difíceis e inviabilizá-los operacionalmente para, ao fim, manter a impunidade dos barões e príncipes que se apossam das coisas públicas."

A sociedade brasileira, exausta do cotidiano de denúncias de corrupção no serviço público e das estrepitosas prisões temporárias que antecedem as ordens de soltura em idêntica proporção, tem o dever de se insurgir contra a tentativa de expandir quase ao infinito a impunidade dos malfeitores.

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