O ministro da Economia, Paulo Guedes, chamou de “demonstração colossal de insensatez” a mobilização do funcionalismo público prevista para março, pedindo aumento salarial. Várias categorias já começaram a se movimentar, embora ainda mantenham a estratégia em segredo, e alegam fatores como as mudanças na cobrança da contribuição previdenciária dos servidores, instituídas pela reforma da Previdência. Além disso, e apesar das reclamações de Paulo Guedes, o funcionalismo está se amparando em um precedente aberto pelo próprio presidente Jair Bolsonaro.
Guedes tem um forte argumento quando trata da situação atual dos cofres públicos. Na prática, os servidores federais trabalham para um patrão que acumula enormes prejuízos ano após ano, tendo de se endividar perigosamente para continuar na ativa. Na iniciativa privada, um cenário desses já teria resultado em falência, ou pelo menos em demissões. No entanto, esta é uma alternativa que o governo não tem à disposição – e os funcionários públicos sempre precisam ter em mente que estão livres da maior mazela socioeconômica que a crise causada pelo lulopetismo deixou para o Brasil: o desemprego.
Cabe ao governo resistir a pressões corporativistas que ameacem a saúde fiscal do Brasil
Alguns representantes dos servidores até têm consciência de que seu pleito tem consequências sérias sobre a saúde fiscal do país. “O teto vai ter que mudar”, afirmou ao jornal O Estado de S.Paulo o presidente do Fórum Nacional Permanente das Carreiras Típicas de Estado (Fonacate), Rudinei Marques. O “teto” a que se refere, evidentemente, é o teto de gastos implantado por emenda constitucional em 2016, e que impede o gasto global do governo de subir acima da inflação. Mudanças no teto, por essa lógica, corresponderiam a uma permissão para que o poder público retome a espiral crescente de gasto público que era a regra antes da adoção do teto. É a receita que levou estados como o Rio de Janeiro e o Rio Grande do Sul ao colapso, vitimando inclusive os próprios servidores, prejudicados no pagamento de seus salários.
O discurso de austeridade, no entanto, esbarra na prática recente do presidente Bolsonaro, que tem usado até mesmo medidas provisórias para fazer concessões a determinadas categorias, especialmente na área de segurança pública. Foi assim com o aumento para agentes da Polícia Rodoviária Federal; da MP 918, que reestrutura cargos na Polícia Federal; e da promessa de reajuste de até 25% para policiais do Distrito Federal, cujos salários são bancados pela União. Bolsonaro, assim, repete a postura corporativista que adotou durante a tramitação da reforma da Previdência, quando interveio pessoalmente em defesa de regras mais suaves para os policiais. E, assim como ocorreu naquela ocasião, fica aberto um precedente para que os demais servidores busquem os mesmos benefícios, por mais que seja matematicamente impossível atender a todas as reivindicações.
O governo só não enfrentará uma dificuldade adicional neste caso graças a uma decisão do Supremo Tribunal Federal em setembro de 2019. Embora o artigo 37, X da Constituição afirme que “a remuneração dos servidores públicos somente poderá ser fixada ou alterada por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices”, a corte resolveu que não há obrigação de se fixar uma data-base anual para o funcionalismo, desde que o Poder Executivo justifique ao Legislativo a decisão. A polêmica causada por este trecho – como tantos outros na Constituição, reflexo da tradicional crença parlamentar na geração espontânea de dinheiro – reforça a importância da reforma administrativa e das PECs do Plano Mais Brasil, que propõem mecanismos muito mais racionais para lidar com o gasto público (incluindo o do funcionalismo), especialmente em tempos de crise.
Os servidores estão em seu pleno direito quando pleiteiam reajustes salariais. No entanto, cabe ao poder público avaliar até que ponto a reivindicação pode ser atendida, e o impacto que ela terá no orçamento. O funcionalismo já se encontra em uma posição de vantagem sobre os demais brasileiros, tanto pela estabilidade quanto pelo fato, atestado em diversas pesquisas, de ter salários mais altos em comparação com as remunerações pagas na iniciativa privada para cargos e responsabilidades semelhantes. Em vez de serem as principais interessadas em um ajuste fiscal que garanta ao Estado a saúde financeira que viabilize investimento em pessoal, várias categorias de servidores estão preferindo um imediatismo que terá consequências nocivas no médio e longo prazo. Cabe ao governo resistir a pressões corporativistas que ameacem a saúde fiscal do Brasil – e, para isso, ajudará muito que todas as autoridades trabalhem de forma afinada, sem concessões que abram precedentes que estimulem o retorno à gastança indiscriminada.
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