Democracia, ao contrário do que um certo ex-presidente hoje preso fez entender quando disse, anos atrás, que a Venezuela chavista tinha “democracia até demais” por realizar eleições e referendos, não é apenas o comparecimento frequente às urnas e o respeito às decisões que delas emanam. Ela é muito mais que isso. É o respeito a direitos e liberdades básicos do cidadão, é o estímulo para que ele possa desenvolver livremente os seus talentos ordenados para o bem comum, é a criação de um ambiente onde as pessoas possam se unir e trabalhar juntas pelo progresso da comunidade onde vivem. Uma sociedade é mais democrática quando as pessoas que a compõem têm mais interesse em participar de seu destino das maneiras mais diversas – seja pela ação política direta, seja pelo associativismo ou pelo empreendedorismo –, e quando as instituições que formam o poder público permitem essa participação.
É essa noção de democracia – um regime que, como já tivemos a ocasião de explicar, baseia-se no respeito à dignidade humana e é o único que permite a seus cidadãos desenvolver ao máximo suas potencialidades – que o Instituto Atuação levou em consideração ao elaborar o Índice de Democracia Local, divulgado agora em parceria com a Gazeta do Povo. Índices de democracia não são novidade, mas costumeiramente eles se aplicam a países. Ao trazer a medição para o nível municipal – e, dentro dele, analisando separadamente as regionais em que a prefeitura divide a cidade de Curitiba –, é possível conseguir um retrato mais fiel e ressaltar diferenças locais, a exemplo do pioneiro trabalho de Robert Putnam, que na década de 70 descobriu diferenças bastante relevantes comparando regiões italianas.
Nessa mescla em que a democracia depende não apenas das instituições e das leis, mas também das pessoas, suas atitudes e suas convicções, Curitiba não se sai bem, com nota 49,5 em uma escala que vai de zero a 100. Uma análise mais detalhada do índice mostra que nossas duas grandes deficiências estão na participação política e na cultura democrática, justamente aqueles quesitos que dependem menos das instituições e mais das próprias pessoas. O curitibano, em sua maioria, não conhece os processos de elaboração de leis e planos de governo, nem de fiscalização do poder público. Metade dos entrevistados disse que não votaria, se o voto fosse facultativo. Pior ainda: praticamente nove entre dez curitibanos não participa de eventos ou reuniões de associações ou grupos de nenhuma natureza (a exceção é a de grupos de caráter religioso, e mesmo assim apenas um terço dos entrevistados disse participar de eventos). Esse vácuo de participação popular é o oposto daquilo, que, séculos atrás, Alexis de Tocqueville descobriu nos Estados Unidos: um associativismo vibrante que servia – e ainda serve – como instância intermediária de defesa do indivíduo contra eventuais arbitrariedades ou abusos do Estado e como um ambiente propício para que cada um desenvolva suas habilidades.
O individualismo e o “cada um por si” corroem a convivência
Vivemos, ainda, uma crise de confiança: os entrevistados não acreditam no poder público, mas também não confiam nem mesmo na lisura das outras pessoas e na capacidade delas (sempre dos outros, diga-se de passagem; no máximo, salvam-se a família e os amigos) de agir corretamente e cumprir as leis. Essa desconfiança não raro se volta contra o próprio cidadão: o excesso de regulamentações, exigências, alvarás, comprovantes e o que mais a burocracia brasileira conseguir inventar não existe apenas porque um burocrata assim o quis para a satisfação pessoal do detentor de um pequeno poder, mas também porque no Brasil parte-se do pressuposto de que as pessoas sempre farão o possível para levar vantagem, seja sobre outras pessoas, seja sobre o poder público. Quando isso se aplica ao empreendedorismo, temos os desempenhos medíocres do país nos rankings de liberdade econômica – item que o Índice de Democracia Local também mede, aliás.
O caminho para resolver essa crise de confiança e de participação está em uma mudança de mentalidade. As instituições podem ajudar – por exemplo, demonstrando que estão atentas aos pleitos das associações e grupos que congregam cidadãos interessados, ou sendo firmes com quem pratica crimes e irregularidades –, mas não podem forçar ninguém a rever suas convicções e a confiar nos demais. O individualismo e o “cada um por si” corroem a convivência e criam uma apatia que só convêm aos inimigos da democracia.