| Foto: José Cruz/Agência Brasil

Está na pauta desta quarta-feira, no Supremo Tribunal Federal, um caso cujo desfecho será crucial para entender melhor o significado da laicidade do Estado brasileiro. Desde o ano passado o STF vem ouvindo, em audiência pública, representantes de dezenas de entidades que manifestaram sua opinião sobre o ensino religioso nas escolas públicas, que está no centro de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 2010 e que contesta o modelo adotado em alguns estados brasileiros.

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O ensino religioso é previsto no parágrafo 1.º do artigo 210 da Constituição Federal: “O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”, diz a Carta Magna. O artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação usa o mesmo texto da Constituição, acrescentando que o ensino religioso é “parte integrante da formação básica do cidadão”: um reconhecimento da importância do fenômeno religioso, semelhante ao feito pelo constituinte. Mas essa determinação, à primeira vista, pode contrastar com a laicidade do Estado, definida pelo artigo 19, I, da mesma Constituição Federal. Estaria o legislador sendo contraditório? Há conciliação possível neste caso?

O constituinte de 1988, com muito mérito, reconheceu o papel da religião como elemento importante da sociedade brasileira, desde sua formação, mas, em relação aos cultos religiosos e igrejas, o mesmo constituinte vedou ao Estado “subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”. O que o STF está chamado a fazer é explicar se o ensino religioso na rede pública – e que tipo de ensino religioso, pois há vários modelos em prática no Brasil – afronta alguma dessas proibições. Efetivamente, não se trata de tarefa simples, pois há muitas nuances em jogo e que são não apenas teóricas, mas práticas.

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O constituinte de 1988, com muito mérito, reconheceu o papel da religião como elemento importante da sociedade brasileira

A pergunta que se coloca, e que o Supremo terá de responder, é: que modelo é compatível com os preceitos constitucionais a respeito do ensino religioso e da laicidade do Estado? O trecho da ADI que elenca as modalidades em uso no país cita três sistemas. O primeiro é o “ensino interconfessional”, que trata da “promoção de valores e práticas religiosas em um consenso sobreposto em torno de algumas religiões hegemônicas à sociedade brasileira” e é aplicado na maioria dos estados, sendo ministrado por “representantes de comunidades religiosas ou professores sem filiação religiosa declarada”. O segundo é o “ensino sobre a história das religiões”, que é “secular, devendo ser ministrado por professores de Sociologia, Filosofia ou História”, e aplicado em São Paulo. Por fim, há o modelo usado no Rio de Janeiro, Ceará, Bahia e Acre, em que representantes das confissões religiosas mais expressivas nos respectivos estados ministram as aulas, tratando dos conteúdos referentes à sua religião. Este é o alvo direto dos responsáveis pela ADI; a procuradora Deborah Duprat, que assina a ação, pede que sejam proibidos tanto o ensino religioso fora do modelo não confessional quanto o recurso a professores que atuem na qualidade de representantes de confissões religiosas.

O questionamento da PGR se desdobra em duas frentes: a escolha dos docentes e o próprio conteúdo da disciplina. No primeiro caso, os procuradores argumentam que o modelo com docentes ligados a determinadas religiões constituiria financiamento estatal de proselitismo religioso, violando o princípio de que o Estado deve se manter neutro, sem beneficiar ou prejudicar esta ou aquela fé. Mas o argumento de que se estaria destinando dinheiro público a esta ou aquela confissão religiosa representada nas aulas não se sustenta. Se o salário do professor pertence única e exclusivamente a ele, não à entidade que o indicou ou o certificou, não é possível fazer tal afirmação. Além disso, nos casos citados, as religiões contempladas são aquelas estatisticamente mais populares em cada estado; não é o poder público que está escolhendo esta ou aquela fé. Aqui residiriam, provavelmente, as maiores dificuldades práticas para a aplicação do ensino religioso: de onde viria a remuneração dos professores? Seria possível que as entidades religiosas se encarreguem disso? Havendo essa possibilidade, se uma religião pouco representativa se dispusesse a bancar um professor, a escola seria obrigada a aceitar? E se as entidades de uma religião muito representativa não quisessem ou não pudessem arcar com essa despesa?

A polêmica, no entanto, não se resume a números ou valores; a argumentação da PGR ainda parece tomar por certo que um professor vinculado a uma confissão religiosa necessariamente fará proselitismo em suas aulas, em vez de fornecer informação sobre a religião a que pertence. Aqui, é preciso distinguir entre catequese e proselitismo: aquela é a exposição sobre as doutrinas, moral e ritos associados à religião; este é o abuso, que consistiria, por exemplo, na imposição do ensino religioso de determinada fé a alunos que não compartilham dela ou não estão interessados nas aulas – que, ressalte-se, devem ser sempre facultativas –, ou na tentativa de forçar alunos a participar de cerimônias religiosas extra-aula. Ora, o proselitismo já está devidamente vetado pelo texto da LDB; pais, alunos e demais membros da equipe escolar têm toda a liberdade de denunciar casos em que o professor extrapola suas funções. Ao tratar o tema desta maneira, a PGR coloca sob suspeita qualquer professor de ensino religioso que professe alguma fé – ainda que não fosse indicado por alguma igreja ou entidade religiosa. É um caminho sem solução; convocar professores “sem religião” tampouco resolveria a questão, pois mesmo o ateísmo ou o agnosticismo são também posicionamentos relativos à religião.

Nossas convicções:O Estado laico

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Leia também: Estado laico, religião e política (artigo de Joathas Bello, publicado em 12 de dezembro de 2014)

Mais preocupante é a tentativa de interferir no conteúdo da disciplina. Embora à primeira vista pareça razoável pleitear um ensino religioso estritamente não confessional, esta posição apresenta dois problemas. O primeiro é que se desfigura completamente a disciplina de Ensino Religioso. Uma análise da religião do ponto de vista histórico, filosófico ou antropológico cabe nestas respectivas disciplinas, e não no Ensino Religioso – nem seria possível chamar tal análise de Ensino Religioso, pois ela é outra coisa diferente. Mas ainda pior é pretender que o Estado passe a determinar o conteúdo das aulas, pois, ao fazê-lo, necessariamente emite juízos de valor sobre as religiões. Ou seja, a proposição da PGR é justamente a alternativa que viola a separação entre Igreja e Estado.

Nesta decisão entra em jogo a distinção entre a saudável laicidade do Estado e o laicismo ideológico. A laicidade vem em socorro tanto das religiões, ao privá-las da interferência estatal, quanto da sociedade, que vê respeitado seu pluralismo quando não se impõem convicções de uma religião em particular sobre toda a população. Não apenas o constituinte de 1988, mas também expoentes da filosofia política, inclusive identificados com posições tidas como mais à esquerda, como Jürgen Habermas e John Rawls, reconhecem a importância da religião, inclusive defendendo o direito das religiões a participar da discussão pública. Já o laicismo tenta apagar completamente o fenômeno religioso da esfera pública, confinando-o, quando muito, ao âmbito estritamente privado. Este laicismo, que viu suas formas mais exacerbadas nas perseguições ocorridas na Revolução Francesa, cria uma subclasse de cidadãos: aqueles que, por seguirem uma fé religiosa, não têm o direito de ter ouvida sua voz no debate público.

Leia também:O papel da religião no debate público (editorial de 9 de setembro de 2014)

Deixar que o Estado defina o conteúdo do ensino religioso é a posição mais ideológica e mais incompatível com o espírito da laicidade – se assim for, cabe inclusive questionar se não seria melhor eliminar a disciplina que deixá-la à mercê da burocracia estatal. Que o voto do ministro Luís Roberto Barroso, relator da ADI, e de seus pares no Supremo seja baseado no saudável princípio da laicidade e não por considerações ideológicas.

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