Todos os brasileiros preocupados com o bom combate à corrupção têm razões mais que suficientes para acompanhar um julgamento que ocorrerá nesta quarta-feira, no plenário do Supremo Tribunal Federal. Os magistrados estão sendo chamados a tomar uma decisão que pode simplesmente jogar por terra quase todo o trabalho realizado pela Operação Lava Jato, a poucos dias do quinto aniversário do seu início. O que está em jogo é a competência para julgar crimes comuns que tenham sido cometidos ao mesmo tempo, ou em conexão com crimes eleitorais – por exemplo, um ato de corrupção que tenha dado origem a uma quantia usada para abastecer um caixa dois de campanha.
Que os crimes eleitorais devem ser julgados pela Justiça Eleitoral é consenso. Mas e os crimes de corrupção, ou lavagem de dinheiro, que geram o valor usado para uma irregularidade eleitoral? As duas turmas do STF têm adotado entendimentos diversos sobre o tema: a Primeira Turma, formada por Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e Rosa Weber, vem entendendo que a competência é da Justiça Federal – por exemplo, nos casos envolvendo a Petrobras, a 13.ª Vara Federal de Curitiba, que era ocupada por Sergio Moro até o ano passado. Já a Segunda Turma do STF – Edson Fachin (relator da Lava Jato no Supremo), Cármen Lúcia, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski – vem decidindo que o caso inteiro precisa ser remetido à Justiça Eleitoral. Foi o que ocorreu, recentemente, com processos envolvendo o ex-presidente Michel Temer e o senador José Serra. O julgamento desta quarta-feira é relacionado a uma outra investigação, contra o ex-prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes e o deputado federal Pedro Paulo Carvalho Teixeira, ambos do DEM.
A Lava Jato estará ameaçada de morte se o plenário consagrar o entendimento que vem prevalecendo na Segunda Turma. Ali, vigora a tese baseada no Código Eleitoral, de 1965, que, em seu artigo 35, parágrafo II, diz que “compete aos juízes [eleitorais]: processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos”. Além disso, o Código de Processo Penal, no artigo 78, IV, afirma que “no concurso entre a jurisdição comum e a especial, prevalecerá esta”, regra que valeria não apenas para a Justiça Eleitoral, mas para qualquer tribunal “especializado”, como a Justiça do Trabalho ou a Militar. Portanto, pareceria que, quando há crimes comuns cometidos em conjunto com crimes julgados por um tribunal especial (como é a Justiça Eleitoral), o “pacote completo” deveria ser remetido a esse tribunal.
Provavelmente teremos a maior onda de confissões de caixa dois da história do país
No entanto, há um aspecto histórico importante a ressaltar: ambos os códigos foram promulgadas durante um “vácuo” em que não existia Justiça Federal, abolida em 1937. Quando ela foi restaurada, em 1966, surgiu um conflito natural entre competências, jamais resolvido pelo legislador até 1988. Foi quando a Constituição, em seu artigo 109, IV, determinou que “aos juízes federais compete processar e julgar: (...) os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas”. Não há a menor dúvida de que os casos de corrupção em geral, e os da Lava Jato em particular, se encaixam perfeitamente nesta descrição, permitindo concluir que tais crimes seriam competência da Justiça Federal, e não da Eleitoral. Mesmo a ressalva que encerra o inciso IV (“excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”) não basta para que todos os crimes sejam julgados pelo tribunal especial, pois a “competência da Justiça Eleitoral” corresponde aos crimes eleitorais, não aos comuns. É esta a argumentação que vem sendo usada pela Procuradoria-Geral da República para defender que os crimes comuns, como os de corrupção e lavagem de dinheiro, permaneçam nas mãos da Justiça Federal.
Que a Constituição se sobrepõe ao Código Eleitoral e ao CPP é algo evidente; portanto, a regra da separação dos processos, com a competência do juiz federal para julgar os crimes comuns, é a que melhor reflete o desejo do constituinte, para quem o crime “especial” não tem o poder de levar consigo o crime “comum” – esse raciocínio, aliás, fica bem explícito no caso dos crimes militares conexos a crimes comuns, em que o próprio CPP, no artigo 79, já determinava a separação. Não faria o menor sentido que a regra valesse para um tipo de crime e não para outro.
Disso não se pode concluir, no entanto, que os ministros que votem pela remessa dos processos completos à Justiça Eleitoral o façam movidos por algum desejo escuso de fazer prevalecer a impunidade. Poderão agir movidos por uma interpretação da Constituição feita de boa fé, ainda que esteja longe de ser a melhor interpretação. Mesmo assim, o que ocorrerá caso o plenário do STF decida pela união de todos os processos sob a Justiça Eleitoral será justamente a impunidade. Basta que um condenado da Lava Jato alegue o cometimento de crime eleitoral conexo à corrupção para que as decisões judiciais proferidas até agora e que o afetem sejam anuladas. Provavelmente teremos a maior onda de confissões de caixa dois da história do país, com o único objetivo de destruir investigações e sentenças cuidadosamente construídas.
Leia também: Nem tanto ao céu e nem tanto à terra (artigo de Claudio Slaviero, publicado em 21 de fevereiro de 2019)
Leia também: O novo golpe contra a Lava Jato (editorial de 25 de abril de 2018)
A força-tarefa da Lava Jato, ao longo desses cinco anos, sempre centrou esforços nos atos que deram origem ao dinheiro sujo, justamente para não dar margem ao tipo de mistura que o Supremo pode realizar nesta quarta-feira. De repente, centenas de processos de corrupção, envolvendo esquemas intrincadíssimos, cairão nas mãos de juízes com mandatos curtos, sem nenhum preparo para compreender tais crimes, e alguns dos quais nem mesmo pertencem à magistratura, já que há vagas nas cortes eleitorais que são preenchidas por advogados eleitoralistas. E a prioridade de um tribunal eleitoral sempre será julgar os processos de impacto imediato em um pleito; os casos de corrupção certamente ficarão para o fim da fila.
Essa explicação é suficiente para rechaçar, inclusive, uma solução intermediária que o STF poderia adotar: decidir pela unificação de processos na Justiça Eleitoral, mas preservando o trabalho feito até agora, como investigações, denúncias e sentenças. Evita-se a impunidade passada, mas costura-se a impunidade futura, especialmente agora que, com a renovação promovida pelo eleitor em 2018, uma série de figuras nefastas da política perdeu o foro privilegiado e deve ter seus atos investigados pela força-tarefa da Lava Jato e julgados por magistrados de primeira instância, como Luiz Antônio Bonat, Marcelo Bretas e Vallisney Souza.
Não é exagero, portanto, dizer que o futuro da Lava Jato depende, sim, do julgamento desta quarta-feira. Uma interpretação equivocada da Constituição, dando mais força à legislação infraconstitucional que ao texto da Carta Magna, terá um efeito desastroso no combate à corrupção. A solidez da tese jurídica em defesa da separação dos processos não tem como ser dissociada do aspecto prático, das consequências que uma decisão errada pode ter para o país. Que os ministros tenham ambos os aspectos em mente na hora do seu voto.