Quem quer que leia o Código Penal da primeira à última linha vai perceber que a única ocasião em que a lei prevê que “não se pune” uma conduta criminosa específica é nos casos de aborto em caso de estupro e para salvar a vida da mãe. Isso significa que, mesmo reconhecendo o aborto como uma violação do direito à vida, a lei escolhe não puni-lo nesses casos.
A razão para isso é compreensível: um pai que, por negligência, causa um acidente e perde o próprio filho pode não ser punido. O Código Penal prevê essa possibilidade para os casos de homicídio culposo em que as consequências do crime já são mais graves do que a própria pena. Da mesma maneira, a lei entende que o aborto nesses dois casos é tão dramático e doloroso para a mãe, que ela não pode ser punida.
Os senadores teriam a oportunidade histórica de garantir que se aprove um texto cuja redação exclua apenas a punição do aborto, e não sua ilicitude, revertendo assim anos de inovações interpretativas.
Na legislação ordinária, essa previsão se chama tecnicamente de “excludente de punibilidade”. Ao contrário do que se possa imaginar, ela é plenamente compatível com a proteção integral da vida desde a concepção, inscrita na Constituição, assim como no caso do homicídio culposo. Não punir um crime, em situações-limite, é completamente diferente de dizer que a conduta não viola um bem jurídico protegido pelo direito.
No entanto, é uma confusão a respeito desse ponto que parece estar levando os senadores a não ter total clareza nas discussões sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 29/2015, que tramita no Senado Federal. A proposta original, de autoria do ex-senador Magno Malta (PR-ES), previa apenas que o artigo 5º da Constituição passasse a prever “desde a concepção” a inviolabilidade do direito à vida.
A intenção, diante da ofensiva pró-legalização do aborto, era explicitar o que sempre fora a leitura correta da proteção ao direito à vida, quer na Constituição de 1988, quer nas anteriores, quando legalizar o aborto estava completamente fora de questão. Quando se lembra que o Código Penal está em vigor desde 1940, logo se vê que essa compreensão nunca foi incompatível com as excludentes de punibilidade previstas pela lei.
A rigor, portanto, a PEC nem seria necessária: quando se tem clareza sobre o imenso valor da dignidade humana e de que é na concepção que surge um novo ser humano único, que tem igual dignidade a todos os outros, independentemente de seu estágio de desenvolvimento, compreende-se também que o direito à vida abrange os seres humanos não nascidos. No entanto, apesar disso, muitos daqueles que têm uma posição pró-aborto fizeram uma leitura diferente disso, o que faz preciso, de fato, encontrar uma estratégia de redação constitucional que elucide esse ponto de uma vez por todas, intuito cumprido pela redação original da PEC 29/2015.
O problema é que as dúvidas – e a desinformação – são tantas nesse campo, que muitos senadores se convenceram de que a aprovação do texto revogaria as duas excludentes de punibilidade previstas no Código Penal e a criada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2012, para a gravidez de fetos anencefálicos, o que não é verdade. Esses senadores, mesmo contrários à legalização do aborto e ao ativismo judicial, não estão dispostos a votar um texto que, segundo pensam, revogaria as disposições legais em vigor.
Nesse cenário, os senadores que apoiam com mais ênfase a PEC 29/2015 entenderam que o melhor caminho seria fazer um acordo político para aprovar a proposta, colocando no texto constitucional as duas excludentes de punibilidade. Um grupo de senadores quer ainda incluir a hipótese criada pelo STF, o que, na prática, está paralisando o andamento do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.
Os senadores pró-vida estão enxergando um momento político privilegiado para avançar o texto: nenhuma das 13 senadoras da casa, por exemplo, se declarou a favor da legalização do aborto, um cenário inédito no Brasil. Eles também veem a necessidade de se contrapor ao ativismo do STF, que tem uma ação pautada ainda este mês para discutir mais uma hipótese de aborto, agora em caso de gestantes infectadas com o Zika vírus, e pode até mesmo decidir pela legalização irrestrita do aborto até a 12ª semana, se resolver julgar a APDF 442.
A maior parte dos movimentos pró-vida brasileiros, porém, está vendo riscos na atual redação da PEC e se opondo, mais ou menos abertamente, à inscrição das excludentes no texto constitucional. O receio é compreensível: as excludentes de punibilidade que constam do Código Penal foram paulatinamente transformadas em excludentes de ilicitude e, depois, em um verdadeiro direito ao aborto em ambas as hipóteses, quando, na década de 1990, o procedimento foi regulamentado no SUS. Seguindo a mesma interpretação, a inclusão das excludentes na Constituição poderia se transformar em um “direito constitucional” ao aborto.
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É preciso lembrar, porém, que a política é a arte do possível. Por óbvio, o cenário ideal seria aprovar a redação original da PEC – que, como recordamos, não revogaria as excludentes de punibilidade em vigor. Mas se se abriu uma janela de oportunidade para avançar na agenda de proteção e afirmação da vida, parece razoável aproveitá-la para mandar um recado político poderoso ao STF e deixar claro, de uma vez por todas, que a vida é protegida desde a concepção, mesmo que isso exija um texto de compromisso.
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Movimentos pró-vida e juristas razoáveis podem, inclusive, durante os debates, aproveitar para chamar a atenção para o sentido original das excludentes de punibilidade, esquecido por muitos, e deixar claro que sua inscrição na Constituição faz parte de um compromisso político de não punir o aborto em alguns casos, mas não de transformá-lo em direito constitucional. Cientes disso, os senadores teriam a oportunidade histórica de garantir que se aprove um texto cuja redação exclua apenas a punição do aborto, e não sua ilicitude, revertendo assim anos de inovações interpretativas.
Isso poderia ser feito, por exemplo, aprovando um texto que dissesse: "Embora seja ilícito o aborto se não há outro meio de salvar a gestante ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando absolutamente incapaz, de seu representante legal, não se pune a conduta nessas hipóteses”.
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